“O movimento oferece oportunidade, recreação e lucro. Para outros, o movimento é perigoso e restrito, e suas expulsões sociais são muito mais severas e permanentes.”1
“É comum que se pense que a arqueologia estuda o passado, mas essa ideia é incorreta. A arqueologia estuda fenômenos do presente: os sítios arqueológicos e outros tipos de registros que viajaram pelo tempo, às vezes por milhões de anos, até os dias de hoje. (…) O passado é um país estrangeiro, um território estranho, ao qual jamais poderemos retornar. Qualquer tentativa de reconstruí-lo será sempre especulativa, sujeita a variações de humores, interesses e agendas.”2
Há quase dez anos, o filósofo norte-americano Thomas Nail lançou o livro The figure of the migrant, obra em que teoriza a kinopolitics, ou seja, a política do movimento. Trata-se de uma perspectiva inovadora sobre a política, ao enfatizar a importância do movimento, dos fluxos e da mobilidade. Nail desafia as concepções tradicionais de política e de sociedade, que tendem a ser analisadas como estáticas, espaciais e temporais, ao propor que os regimes de movimento são fundamentais para entender as transformações da contemporaneidade. “As sociedades estão sempre em movimento: direcionando pessoas e objetos, reproduzindo suas condições sociais (periodicidade) e esforçando-se para expandir seu poder territorial, político, jurídico e econômico por meio de diversas formas de expulsão”.3
Se de forma geral esta perspectiva apresenta-se como crucial, torna-se seminal para apreender uma poética constituída no movimento e na migração, como é o caso de Liene Bosquê. Formada em Artes Visuais e Arquitetura em São Paulo, sua trajetória tem se alicerçado no exterior. Primeiro, Lisboa, depois Chicago, Nova York e, mais recentemente, Miami. Trazendo na bagagem a dupla formação, a artista passa a reconhecer os novos territórios e a trasladá-los para seus trabalhos a partir da arquitetura externa do patrimônio edificado, sendo muito recorrente os gradis e as grades, elementos que são encontrados à altura dos olhos do passante e que têm a função ambígua de proteger os corpos e cercear o movimento. Ambos os elementos são feitos de ferro (em sua maioria), um material que se popularizou na arquitetura do século XIX devido à Revolução Industrial e que tem Paris como a epítome da arquitetura do ferro.
Tanto pelo caráter arquitetônico quanto à mobilidade do transeunte, não há como não associarmos também estas questões à modernidade e ao flanêur de Walter Benjamin, figura representativa de uma nova forma de experiência sensorial e perceptiva, mediada pelo ambiente urbano e pela mercantilização da sociedade. Apesar da capital francesa não fazer parte do percurso de vida de Liene Bosquê, a influência de Paris na estética e no imaginário de modernidade de fin de siècle ecoa nas cidades onde morou, seja Lisboa ou São Paulo, metrópole brasileira que encarna e representa as transformações econômicas e sociais do século XX. A estética hegemônica é migrante nas periferias do mundo. Portanto, as teorias de Thomas Nail e de Walter Benjamin se complementam nesta abordagem da política do movimento e da estética. Enquanto Nail foca-se na mobilidade como uma condição ontológica e política central para examinar e entender as estruturas de poder, Benjamin se concentra na experiência estética e perceptiva da mobilidade dentro do contexto urbano. O flanêur é uma pessoa local, mas sem apegos ao espaço, e o migrante (emigrante para a terra natal e imigrante para a terra de destino), uma espécie de fita de Moebius, pertencente e não pertencente ao lugar. Nas duas situações, encontra-se a transformação constante da sociedade e da cidade.
As obras Carandiru e Clarabóias, feitas em 2003, prenunciam o interesse da recém-formada artista nas estruturas de ferro mesmo antes da migração. Nas gravuras temos o antigo presídio quase abstratizado por suas grades e, nos fotogramas, a estrutura que deixa entrar a luz no edifício do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro é repetida e sobreposta. Ambos os trabalhos partem de fotos analógicas feitas por ela, que são transmutadas em outros métodos de criar imagens. Temos aqui a dualidade apontada por Nail em sua política do movimento: uma estrutura cerceia a liberdade de ir e vir, enquanto a outra proporciona beleza e bem-estar para o lazer e a cultura. Nos demais trabalhos selecionados para esta exposição, gradis e grades são vestígios da exploração de Liene Bosquê pelas cidades dos países onde morou. Em algumas obras, temos o uso de técnicas de gravação em tecido que envolvem processos fotoquímicos como cianotipia e goma bicromatada e a alteração de compostos ferrosos ou férricos, como a oxidação; em outras, o recorte das formas também em tecidos, couro e no vinil. Uma terceira vertente guarda a memória dos lugares moldados em papel e argila. Todas estas séries são feitas diretamente no local e carregam a característica de serem portáteis, podendo facilmente migrar. Historicamente a arte têxtil porta uma forte carga de resistência cultural e afetiva tornando-se, portanto, também na poética da artista, um catalisador de memórias tanto individuais quanto coletivas. Além de apresentar uma forte relação entre o corpo e a arquitetura como reminiscências dos lugares, os trabalhos em tecidos são ativados pelo movimento dos visitantes da exposição. Em contraponto à fluidez dos tecidos, encontram-se os elementos arquitetônicos e sua fixidez. Grades e gradis são como territórios limítrofes, membranas que interligam dentro e fora.
Nesta metodologia quase arqueológica de Liene, seus trabalhos assemelham-se a fósseis urbanos, numa espécie de fantasmagoria das formas. Originalmente referente a um tipo de espetáculo de ilusionismo que surgiu no final do século XVIII, em que imagens eram projetadas com dispositivos ópticos para parecerem reais, o termo “fantasmagoria” passou a ser usado por Benjamin para descrever o processo pelo qual os produtos do capitalismo e os espaços urbanos são apresentados de forma a dissimular suas origens e condições de produção. Na contemporaneidade, estes vestígios de arquiteturas que frequentemente simbolizavam o progresso dão conta não apenas das ilusões do otimismo tecnológico e do consumo, mas também das realidades sociais e econômicas duras e ocultas da modernidade. Em Arqueologias Migrantes, as formas recortadas e alguns objetos tridimensionais tomam conta do espaço também com suas sombras. A presença e a ausência, o positivo e o negativo, a luz e a sombra interconectam-se nesta espécie de nova fantasmagoria. A transposição de elementos de vários lugares percorridos pela artista para a galeria e a maneira em que os trabalhos abraçam a própria arquitetura do espaço fazem-nos indagar sobre a história deste espaço, da Barra Funda e de seu futuro.
O percurso de mais de vinte anos de Liene Bosquê é, portanto, contado nesta exposição pelo viés das arqueologias migrantes engendradas por ela. Dado que o passado é um país estrangeiro, como afirma Eduardo Góes Neves, para o qual jamais poderemos retornar e ser migrante continua sendo a dimensão constitutiva do movimento social sobre a qual a sociedade se divide, organiza e circula, seus trabalhos são frestas pelas quais podemos observar simultaneamente o passado, o presente e o futuro de um mundo que parece prestes a desaparecer.