Corpos Luminosos, por Ana Roman - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Corpos Luminosos, por Ana Roman

6 de novembro de 2024 | 10:31
Ana Roman
Sonic e Sarasvati, 2024. Acrílica e caneta pigmentada sobre tela, 60 x 40 cm (cada). Sonic e Sarasvati, 2024. Acrílica e caneta pigmentada sobre tela, 60 x 40 cm (cada).

Fabular, narrar de outra maneira, não é romper com a ‘“realidade”, mas procurar tornar perceptível, fazer pensar e sentir aspectos dessa realidade que, usualmente, são considerados acessórios.
Isabelle Stengers1

Ao ser convidada, no fim de 2023, para fazer a curadoria da exposição Corpos Luminosos, individual de Marina Caverzan – com a participação de trabalhos do artista Artur Lescher –, a profundidade das referências e a complexidade da aventura que se seguiria não eram evidentes. A mostra incorpora O Mundo Resplandecente, de Margaret Cavendish, como uma das matrizes de seu percurso. Esse romance do século 17, precursor da ficção científica, apresenta um mundo habitado por criaturas que questionam as bases do saber, dissolvendo as fronteiras entre filosofia, ciência e imaginação. A ideia de “corpos luminosos” emerge no livro não como um elogio à iluminação, mas como uma metáfora para a tentativa de expandir os modos de apreensão da realidade.


Marina Caverzan é uma artista que habita territórios que negam uma separação rígida entre o racional e o místico. Seu trabalho propõe relações com campos como a alquimia, a matemática e os rituais espirituais, não apenas para citar referências, mas para sugerir que a arte pode ser um espaço de experimentação em que múltiplas camadas de realidade coexistem. Nesse sentido, Marina se insere em uma linhagem de artistas que empregam a abstração para criar uma linguagem que transita entre o visível e o oculto, o racional e o intuitivo.

Na primeira sala da exposição, denominada Nave, a confluência de saberes se manifesta com uma intensidade particular. Inspirada nas Tantra Songs, a sala é concebida como um espaço de travessia, no qual o público é convidado a experimentar a geometria e a cor como ferramentas para acessar estados de percepção transformadores. As Tantra Songs, uma coleção de pinturas tântricas originárias do Rajasthan, foram desenvolvidas a partir do século 17 e concebidas para práticas meditativas e rituais espirituais. Nessas pinturas sagradas, formas geométricas, como círculos, triângulos e quadrados, são usadas para muito mais do que representar figuras estáticas; elas funcionam como dispositivos que visam ativar estados de consciência elevados e conectar o observador com dimensões espirituais que transcendem o plano material.

Estar diante das Tantra Songs é como experienciar uma “música visual” que ecoa nas formas e cores. Nas pinturas de Caverzan, essa qualidade vibratória é incorporada e transformada em uma experiência sensorial. As obras funcionam como instrumentos que modulam a percepção, criando uma experiência que envolve corpo e espírito, na qual a geometria se torna pulsação e ritmo: Marina resgata uma dimensão espiritual frequentemente negligenciada na abstração moderna ocidental, cruzando precisão geométrica com emanação simbólica. Seus padrões repetitivos funcionam como mantras visuais, nos quais a repetição cria ritmos que induzem à introspecção.


A escolha do termo “nave” para a primeira sala reforça essa noção de travessia e elevação. A palavra faz alusão tanto à arquitetura das igrejas — onde a nave é o espaço de passagem para o sagrado — quanto à ideia de deslocamento para outros estados de ser, como uma nave espacial que transporta o indivíduo além das fronteiras da percepção cotidiana. A disposição das obras na Nave também não é arbitrária; ela busca criar um ambiente em que a abstração funcione como um diagrama energético, que convida o público a acessar outra qualidade de presença.

Na Nave, os trabalhos da artista carregam títulos que fazem referência direta tanto às tradições espirituais indianas quanto a personagens de videogames, criando uma tensão interessante entre o sagrado e a cultura pop. Os títulos evocam divindades importantes do hinduísmo, como Sarasvati, Lakshmi e Nataraja, cada uma com atributos específicos que remetem ao conhecimento, à prosperidade e ao ciclo de criação e destruição. Ao mesmo tempo, essas referências são combinadas com personagens de videogames, como Sonic e Amy Rose, estabelecendo uma ponte entre o espiritual e o cotidiano, o elevado e o lúdico.
Para citar alguns dos trabalhos expostos, destaco Sarasvati | Sonic. O primeiro trabalho associa-se à fluidez e sabedoria de Sarasvati, deusa do conhecimento e das artes. O emparelhamento com Sonic, personagem veloz e energético, sugere uma fusão entre a rapidez do mundo contemporâneo e a contemplação espiritual. Já em Lakshmi, a obra evoca a deusa da prosperidade com tons de rosa, amarelo e verde, transmitindo a ideia de abundância e expansão, enquanto a repetição dos padrões geométricos alude à multiplicidade de manifestações da riqueza. Por fim, em Amy Rose | Nataraja, a personagem do videogame é associada a Nataraja, forma do deus Shiva como dançarino cósmico. A dança de Shiva representa a criação e a destruição do universo, e a presença de Amy Rose sugere que essas forças cíclicas e transformadoras não estão confinadas ao sagrado, mas permeiam também a cultura de massa e o cotidiano. Essas obras, com suas cores vibrantes e composições que tendem à ideia de movimento, refletem a dinâmica da dança cósmica.

A escolha de combinar tradições espirituais com personagens de videogame não é apenas uma questão de contraste, mas mostra uma tentativa de quebrar as hierarquias tradicionais de valor cultural, sugerindo que o sagrado pode ser encontrado em múltiplos contextos e que as fronteiras entre o espiritual e o popular são porosas. Marina não trata essas referências de forma irônica; ao contrário, ela explora a coexistência dessas realidades.

Além desses projetos em pintura, a Nave abriga a escultura Observatório, de Artur Lescher. O artista, cuja obra se inscreve no centro dessa primeira sala, foi professor de Marina. O trabalho foi escolhido pois apresenta o contraste entre solidez e movimento, explorando a ideia de passagem. O uso do granito, uma rocha formada ao longo de milhões de anos, combinado com técnicas modernas de escultura, reflete a prática de Lescher de integrar materiais duráveis a elementos de transitoriedade. Na Nave, Observatório funciona como uma espécie de âncora que, paradoxalmente, aponta além de si, sugerindo uma linha que atravessa o espaço e amplia a percepção do ambiente.

A sala seguinte da mostra funciona como um tenebrário, inspirado no candelabro das cerimônias cristãs, em que a luz é reduzida gradualmente para criar um ambiente de escuridão e introspecção. Nesse espaço, a iluminação limitada estabelece uma atmosfera contemplativa, na qual se exibem estudos da artista.

No tenebrário, a artista desenha no espaço com a luz: ela apresenta a instalação inédita Kaminoans, composta de formas luminosas de silicone e LED. O título alude aos Kaminoanos, uma raça fictícia do universo Star Wars, caracterizada por sua aparência esguia e graciosa, habitantes de um planeta aquático com arquitetura futurista. As linhas de luz, em constante movimento, criam uma sensação de transformação contínua, evocando a fluidez da água e a modernidade dos ambientes futuristas, enquanto também sugerem uma materialidade quase líquida e etérea.

A exposição conta ainda com uma escultura inédita de resina, na qual a artista explora a relação entre translucidez e a opacidade. Calipso captura a luz para gerar sombras e reflexos que ampliam a sensação de profundidade, sugerindo uma dimensão etérea. No espaço, ela esta justaposta a Osíris, pintura feita com tinta luminescente. Os títulos de ambas evocam histórias ligadas à transição entre noite e dia, vida e morte. Calipso, na mitologia grega, é uma ninfa associada ao mistério e ao encantamento, enquanto Osíris, deus egípcio da morte e ressurreição, simboliza a continuidade dos ciclos naturais. As obras, portanto, estabelecem um diálogo que sugere um fluxo entre escuridão e claridade, entre o tangível e o intangível. A abstração nas obras de Marina Caverzan se projeta para o tridimensional, com formas que se desprendem do plano e ocupam o espaço, transformando a luz em material escultórico.

Corpos Luminosos é um convite para que o espectador atravesse fronteiras e experimente novas formas de percepção. As palavras de Isabelle Stengers com as quais começo o texto parecem aqui ressoar: Caverzan utiliza a abstração para ir além da forma pura, resgatando seu potencial espiritual e
simbólico e trazendo à tona aquilo que muitas vezes permanece oculto ou marginalizado. Suas obras não se limitam a ocupar o espaço físico; elas criam passagens para dimensões alternativas do sentir, sugerindo uma realidade expandida. Ao provocar a introspecção e desafiar o olhar, a artista leva o público a explorar as sutilezas entre o visível e o invisível, o material e o imaterial, tornando o próprio ato de ver uma prática de fabulação, capaz de reimaginar continuamente a experiência do mundo.

  1.  STENGERS, Isabelle. La vierge et le neutrino. Média Diffusion, 2015. ↩︎

Curadora e pesquisadora.

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