Honrando o sobrenome que carrega pelas vias do destino, Jeane Terra guarda e perpassa o passado, transpondo o presente com o corpo-tempo que habita suas memórias. Percebe e persegue as ruínas como uma dança alquímica que sobrevive às intempéries da vida. Faz dela sua amiga/família, apreende, escuta o som de seu tempo e sente, aprende com elas em companhia, abraça o escombro num paradoxal jogo fisiológico de morte, vida e transcendência. Jeane é “corpo-[Physis]”, e sua obra é “[Anemo]-Alma”.
Neologismo criado composto de terminologia, significando ar, sopro, fôlego de alma num gole de vida como princípio vital e sede do pensamento afetivo humano das forças atávicas dos templos da vida.
Parafraseando versos musicais eternizados por Bethânia: “Dentro do mar tem rio, dentro de mim tem o quê?”, tem terra, de Jeane Terra que me inspira a escrever. Não se pode escrever pouco sobre aquilo que é grandioso, sem prosa, rima e versar, caso contrário, certamente não há começo, nem espaço, nem enredo, para a sabedoria secreta das ruínas nos ensinar.
Conhecida por suas expedições artísticas, a mineira radicada no Rio investiga a memória, os deslocamentos e apagamentos urbanos apresentando seu mais recente conjunto de trabalho inédito produzido após imersão no final de 2021, nas cidades submersas do sertão baiano, na represa de Sobradinho, Casa Nova, Remanso, Sento Sé e Pilão Arcado. Lugares que foram inundados pela construção da barragem Sobradinho e da Usina Luiz Gonzaga na década de 1970, e se tornam visíveis de tempos em tempos, pós-seca do Rio São Francisco. Milhares de pessoas, impostas sem escolhas a largar sua terra natal, se deslocaram para outros territórios levando apenas seus pertences e partes das construções de seus lares.
Assim, igrejas, hospitais, barcos, casarios e uma grande caixa d’água capturados pela perspicácia e sensibilidade de seu olhar, dão forma e origem a trabalhos que habitam o imaginário num diálogo íntimo-público sobre pertencimento, afetividade, ambientalismo, territorialismo e humanidade. Sua pesquisa busca o âmago antropológico das relações cotidianas de um povo resiliente. Com sua linguagem poética construtiva documental, propõe um jogo paradoxal entre o onírico-real, cujas obras reconstrói um viés no limiar de uma fábula versus realidade.
Elementos como vidros, escombros e líquidos de um velho rio cujo nome nasce “são”, inundam seu ateliê, onde processa a ressignificação que, postas à posteridade, transgridem lentas à morte. Seu recanto laboral onde decanta e encanta com arte, alquimia e engenhosidade, em que a sabedoria secreta da artista-alquimista visa desvendar os vínculos ocultos que atam seres, coisas e cenários do mistério da matéria, do tempo, da criação e das memórias.
Como artista-alquimista guardiã de memórias, proseia e transmuta a matéria nestes experimentos artísticos encapsulando os tempos cíclicos da terra. Território germinal imanente onde tudo nasce, brota quente, floresce, morre, ressignifica, evolui, renasce mais forte, belo, vívido e permanente. Como artista-[art]ivista que também nela habita, produz obras-vozes para observar e absorver como mais sábio caminho à percorrer transformando dor em poesia. Trilhando, descobre e resgata vestígios que emergem pilares históricos, arquiteta e reedifica cenários submersos de uma mítica fascinante “Atlântida” do sertão da Bahia, do Velho Chico e de todos os santos, de um Brasil ancestral naufragado no esquecimento civilizatório, rompido pelo afogamento ético advindo de um capitalismo selvagem.
Além de sua reconhecida pesquisa alquímica com “pele de tinta”, resultante em pinturas-monotípicas reconstruídas com uma inusitada técnica patenteada que aparenta “pixels analógicos”, peças também feitas com galhos e cipós da Bahia e de Minas que nos remetem a “quadros de pau-a-pique” surgem dessa narrativa, assim como novos trabalhos que oxigenam a série “Cápsulas de Memórias”. Discursos escultóricos de sopros de vidro em que monotipias carregadas de memórias submersas “in vitro”, transferem paisagens vivas de um sertão que clama por sua lembrança. Alguns objetos acoplam fragmentos dos locais visitados e contém água do imenso Velho Chico.
A artista emerge e desloca cenários, transborda seu ateliê com registros e deságua um convite à reflexão com obras que ocupam duas grandes salas e dois ambientes exclusivos para as videoinstalações, dando um tom documental e experiencial imersivo à exposição.
Essa transdução elemental de fruição poética e comunhão acontece entre artista-obra-público-exposição, entre água, terra e chão, entre barro, pau-a-pique, ruína, gente e construção. Memória não é sobre não esquecer, é sobre jamais deixar de lembrar esse planeta verde que há vida. Parafraseando Sá e Guarabyra, se “o sertão vai virar mar”, digo que com “Territórios, rupturas e suas memórias” de Jeane Terra, a instituição Centro Cultural Correios RJ, vai virar o sertão.
Rio de Janeiro, 26 de Setembro de 2022