Pedro Moraleida: Fluxos Plenos de Desejo, por Ricardo Resende - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Pedro Moraleida: Fluxos Plenos de Desejo, por Ricardo Resende

24 de março de 2022 | 13:24

Por Ricardo Resende *

[Ohhh] “que terra boa prá se farrear”!!! escreveu Pedro Moraleida (1977-1999), em uma de suas pinturas-desenhos. É a arte total, [o] “pulo do alto do mundo, carregando um peso insensato”. [Ohhh] “eu grito por vocês”, no gozo e na morte, continua o artista. Pois “eu matei por amor”, por “ser demasiado humano” – que é um sentimento do tamanho do mundo. Ahhh “Insujeição,” são as “vísceras do destino”. Tudo não passa de uma “alegoria do mal estar”, “os contrários e os iguais”. “Antes a arte seja um cocô —> pois ao menos ele fede e tem consistência. Antes a arte seja um vômito —> pois ao menos ele fede e tem consistência. Antes a arte seja um gozo —> pois ao menos ela jorra e tem viscosidade. Antes a arte seja uma dúvida —> pois ao menos ela duvida e tem dúvida”.

Pedro Moraleida é um artista que poderíamos chamar maldito ou iconoclasta.

Sua obra não tem vergonha de ser escatológica, nem de ser a disrupção de si mesma. Sua verve é passível de reconhecimento somente após a morte. Seja por uma maldição, pela língua afiada ou ainda pela “insujeição”, como o próprio Pedro Moraleida escreveu, ele figura no grupo especial dos artistas que são descobertos tardiamente, geralmente, quando já não oferecem mais “perigo”. Tal qual Bispo do Rosário e Hudinilson Jr.

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Visite: Fluxos Plenos de Desejo (página da exposição)

Poderíamos incluir ainda outros, como Leonilson, nesse grupo de artistas – pois, felizmente, existem iguais.  A potência de suas obras viram casos de assombro. Ninguém esperava por Bispo do Rosário, no final dos anos 1990. Foi puro espanto e continua assombrando hoje. 

A condição de Pedro Moraleida não é diferente. É como se estivéssemos descobrindo o artista agora há pouco, em 2017, em Belo Horizonte, quando a exposição de sua obra chamou muita atenção por conta do momento político conservador que estamos vivendo. Um conservadorismo que Moraleida já detectava nos anos 90: contra isso, seu projeto artístico se insurgiu, assombrando a todos com a potência de um repertório visual devastador.

Um assombro que continuou em 2019, em São Paulo, na “Canção do Sangue Fervente”, retrospectiva no Instituto Tomie Ohtake, onde caímos de joelhos diante da magnitude de trabalhos que compõem sua obra maior, “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina”.

Pedro Moraleida morreu precocemente. Tão antes da sua hora, parece, para nos deixar uma obra avassaladora e desafiadora que não encontrou lugar na sua geração e ainda não se encaixa em lugar certo na arte contemporânea. Foi assim também na Universidade Federal de Minas Gerais, onde Moraleida cursou a Escola de Belas Artes – onde não terminou o curso, pois não teve tempo. Seu projeto reafirmava a vitalidade da pintura e desenho, e a íntima relação entre a arte e as problemáticas humanas e sociais, indo contra as correntes momentaneamente dominantes. Tornou-se, assim, uma figura de referência no ambiente da universidade, recebendo apoio de professores e conquistando adeptos entre os alunos, alguns dos quais se sentiram livres para pintar.

Moraleida estava simplesmente à frente, com uma obra insurgente. Deixou-nos uma bomba explosiva, nas nossas mãos e olhos – alimentados por uma sensação de curiosidade dilacerante, de ver mais, sempre mais. E que, enquanto vamos tomando conhecimento do que ele fez, em tão curto espaço de tempo, continua causando estranhamento… incômodo mesmo.

São apenas três anos que poderiam ser demarcados em uma produção que parece ter sido construída intensamente e incessantemente. Em tão pouco tempo, deixou cerca de duas mil peças, composta de pinturas, desenhos, textos, poesia e sonoridades musicais. Não teve tempo de amadurecer. Nem precisava. Ao olharmos para o conjunto, deparamo-nos com uma maturidade e densidade que impressiona, transitando entre o visual e a escrita, misturados sobre o papel para expressar sua inconformidade, e claro, sua insujeição.

Desregramento e virulência – o artista é politicamente incorreto nos modos das suas figuras e pensamento expresso – convivem, assim, com vigor e coragem – pois inovou, ao insistir no desenho e na pintura nos anos 90, em que todo mundo parecia querer fazer só instalações, performances, fotografia e vídeos.

Trata-se de uma síntese que escapa da ordem, da normalidade e claramente, da inconsistência visual e material da arte conceitual que vigorava à época – o final do século passado. Era propositalmente um contraponto viscoso, lamacento e malcheiroso. Fazia frente à tão propalada negação da pintura naqueles anos. Pedro Moraleida xingava com todos os palavrões os chavões e regras da arte contemporânea.

Moraleida insistia nas linguagens ditas tradicionais, como pintura e desenho. Tinha como referentes o cinema, o cineasta alemão Rainer Fassbinder (1945-1982), a literatura maldita do poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948), a insubordinação plástica radical do não-artista sergipano Bispo do Rosário (1909-1989) e a automutilação lamuriosa na obra do cearense Leonilson. Eles fornecem algumas de suas referências estéticas, morais e comportamentais.

Parece mesmo que Moraleida tinha os dias contados, tal a intensidade do que vivia. Sem titubear, escreveu que “Ela [a arte] tem cheiro, é fedorenta, consistência, viscosidade vomitiva, dureza, jorra o gozo em cenas de luxúria”. Era “dos desejos intensos e é duvidosa, portanto, não é certa”. E é “da inadequação”. E do “desejo perverso”, da poética existencialista nas representações, que ficam entre sexualidade exacerbada e agressão – quase violência –, desenhos, pinturas e textos em que tudo é muito sexual e escatológico, em que há a perversidade e o gozo também.

É furiosamente anti-convencional do que se vê na arte feita entre nós. Traz um cromatismo vibrante e violento, muito atual na sua forma de “desenhar” e “pintar” o grotesco moral da sociedade e da política. Mistura, assim, filosofia, psicanálise, literatura, poesia e as revistas e jornais “sujos” dos anos 80 e 90, como Pasquim e MAD – e, claro, os cartunistas “subversivos” da normalidade, como Laerte e Angeli.

Moraleida foi o iconoclasta dos artistas, dos amigos, dos deuses, dos animais, das paisagens, das mulheres, dos amebóides e da poderosa serpente que morde o próprio rabo, na pintura “Cadáver Adiado Que Procria – A Roda da Serpente (Série Corpos Sem Órgãos 03), s/d”, que ocupa lugar central na mostra na Janaina Torres Galeria. É uma faca afiada que abre as vísceras do seu intestino. E, por que não, destino?

Para a mostra na Janaina Torres Galeria são exibidas pela primeira vez em uma galeria comercial, em São Paulo, as séries Primitiva, Corpo sem Órgãos, Paisagens, Mulheres, O Deslocamento dos Artistas, Deuses, Desenhos com Letras, Amebóide e a série Angústia, entre outros trabalhos que perfazem o panorama de uma obra tão jovem, mas de rara potência e profundidade.

* Ricardo Resende, curador do Museu Bispo do Rosário.

Fluxos Plenos de Desejo
Pedro Moraleida

Curadoria: Ricardo Resende
Local: Janaina Torres Galeria
Abertura: sábado, 2 de abril, em horário especial das 11h às 17h, com visita guiada pelo curador às 16h
Período expositivo: até 26 de maio de 2022
Horário: de terça a sexta, das 10h às 18h. Sábados, das 10h às 17h
Endereço: Rua Vitorino Carmilo, 427, Barra Funda, São Paulo
Informações para o público: (11) 4240-2298 | (11) 11 93312-6253 (WhatsApp)

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