O mineiro Pedro David vive na metade do mundo “que foi eleita para ser fonte de recursos para a outra metade” – e faz disso o elemento central de uma experiência estética marcante entre os artistas de sua geração. Unindo estética e política, David parte do local para atingir questões centrais não apenas da arte, mas do mundo globalizado. Intimidade, entorno, experiência, natureza, deslocamento, precariedade, comunidade, destruição, cicatrizes – é amplo o leque de temas tratados a partir da fotografia, da escultura e, agora, dos bordados sobre papel fotográfico que levam sua arte a novas dimensões. Nesta entrevista, Pedro David nos conta como é estar na periferia de Belo Horizonte e no mundo – e das possibilidades que enxerga na arte de criar uma “rede de subversão”.
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Pergunta: “Sobre Experiência, ou o que Não pode ser apagado”, seu trabalho mais recente, traz bordados sobre as fotografias. Significados à parte, como é trabalhar além do papel?
Pedro David: Experiência vem de uma tentativa de levar a fotografia à abstração. Uma influência que tenho tido cada vez mais intensa há alguns anos é o expressionismo abstrato norte americano. Ele vem como uma exacerbação de uma prática em que já venho insistindo há um tempo, que é a tentativa de libertação da fotografia do registro objetivo. Se em um momento carreguei minha linguagem de metonímias para falar do mundo sem sair de meu bairro – O Jardim -, e depois de minha própria casa – 360 Metros Quadrados -, agora proponho outro desafio, o de falar de sensações próprias, ontológicas, a partir de uma imagem sem referências geográficas, físicas ou temporais. Fotografo marcas no asfalto, próprias das marginais da rodovia que me serve de avenida. Mas penso nas experiências que formam nossa existência. Vivência. As costuras vêm no momento seguinte ao título, para desafiá-lo: “não pode ser apagado”, mas a gente bem que tenta… e a emenda fica pior que o soneto. O ato de bordar vem de Leonílson, de Louise Bourgeois, referências fortes para mim. E de uma vontade, depois de muitos anos de fotografia pura, de experimentar outros materiais e possibilidades.
Você diz se interessar pelo registro do seu entorno; o que vê hoje a partir do bairro de Nova Lima, em Belo Horizonte, onde mora atualmente?
Moro nesta região já há quase 10 anos, e desde que cheguei notei aspectos globais na ocupação do terreno. O que passei a registrar desde minha chegada não é exatamente o local, ou como ele é, mas sim características da contemporaneidade, que encontro aqui e que me fazem refletir sobre nosso lugar no mundo e o que estamos fazendo com ele.
Por vezes, seu “mundo particular” poderia estar localizado em qualquer lugar – ou seja, não há propriamente uma referência geográfica explícita na sua produção. Onde sua fotografia quer estar?
Minha fotografia fala sobre sensações, e quer levar o espectador a refletir sobre o mundo em que vive, sobre seu lugar, sobre o que pode fazer para viver melhor em um mundo que está sendo destruído.
Por outro lado, seu trabalho registra um Brasil profundo, visto muitas vezes pelo retrovisor – images remanescentes “do que não foi, mas quase”, como você escreve sobre a série Fachadinhas. Acha que o país um dia será?
É difícil viver em uma região – uma metade do mundo -, que foi eleita para ser fonte de recursos para a outra metade. Será que esta outra metade vai nos deixar ser? Será que vamos nos insurgir? A arte é uma forma de inssurreição. Fazemos nela o que nåo conseguirmos fazer no mundo real. Criamos uma rede de subversão a partir da arte. Não muda tudo completamente, mas pode ajudar a viver melhor, a pensar melhor, pelo menos.
Madeira de lei é, sem dúvida, um trabalho de bastante sucesso. O que te orientou na sua confecção?
Madeira de Lei carrega muitas questões que eu já trabalhava desde antes de seu “encontro”. E tem levado todo o meu trabalho à sua direção. A questão ambiental sempre esteve muito presente em meu trabalho, de diversas formas. O Eucalipto, que está diretamente ligado ao desmatamento do Cerrado, também me acompanha desde meu início, quando comecei a viajar pelas regiões Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, para realizar os projetos Paisagem Submersa e Rota Raiz. Em cada retorno, reparava no crescimento das plantações de eucalipto, avançando sobre o Cerrado. E nas consequências nefastas da monocultura sobre a natureza e sobre as comunidades locais. Durante os 5 anos em que viajei frequentemente para estas regiões, fotografei muito os monótonos campos de eucalipto. Criei uma coleção de imagens. Mas foi em 2012, quando estava fazendo um trabalho para o museu Casa de Guimarães Rosa, que me deparei com esta situação, concomitante, de Cerrado e eucalipto ao alcance de uma mesma fotografia. Aquilo foi a materialização de uma imagem que eu sempre quis fazer, mas ainda não havia visualizado. Estas cenas retratam no tempo fugaz do presente, o passado natural – a árvore nativa -, e o futuro, o eucalipto clone. No instante decisivo – mas particular do reino vegetal – em que convivem. Esta série é muito importante para mim, pois foi uma guinada à questão ambiental de forma mais direta, e porque foi muito bem aceita, tanto no ambiente da fotografia, quanto no da arte contemporânea – meus dois campos de atuação. Mas também atinge um público menos específico, que lê muito bem esta imagem, não apenas como um registro de uma situação dada, mas como a metáfora que ela pode representar, de uma vida encarcerada, sufocada. O que me interessa muito.
Saiba mais
Pedro David (site do artista)
O mundo particular de Pedro David na série “360 metros quadrados” (Estadão)