Pra Vela Não se Apagar (texto curatorial) - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Pra Vela Não se Apagar (texto curatorial)

2 de maio de 2024 | 11:30
Alexandre Araujo Bispo
Guilherme Santos da Silva, Vou de carona, 2024. Óleo sobre tela, 23,2 x 31,2 cm. Guilherme Santos da Silva, Vou de carona, 2024. Óleo sobre tela, 23,2 x 31,2 cm.

 Uma boa semente, mesmo se cair no mar,
tornar-se-á uma ilha. Provérbio Malaio.[1]

Em 1932, Mário de Andrade (1893-1945) escreveu para o Diário Nacional a crônica O Mar, onde discorreu sobre seu gosto por esse ambiente, despertado por um passeio a Santos, litoral paulista, quando ainda menino. Ao final, Mário confessa: “Eu gosto muito do mar; e é junto dele, nalguma praia do Nordeste, que pretendo morar”.[2] Há entre esse desejo de Mário e o conjunto de obras inéditas do artista Guilherme Santos da Silva, produzidas entre 2023 e 2024, algumas proximidades e uma distância: o mar do nordeste. Em Mário, ele é sonho. Para Guilherme, é pintura de apelo onírico, mas não surrealista,  nem fantástico. Como o escritor, o pintor gosta tanto do mar nordestino que criou um mundo visual próprio, quase mágico, no qual veleiros solitários aparecem como formas geométricas mais ou menos identificáveis.
A artista baiana Yêdamaria (1932-2016) fez isso nos anos 1960, a partir de uma paleta sedutora de azuis e vermelhos intensos, marcados por sua experiência de nascer e, à época, estar na Bahia. Guilherme faz algo semelhante, mas sua paleta é fria, os tons,  rebaixados, em baixo contraste e fuga do brilho envernizado, que poderia aplicar à demorada pintura à óleo.  Enquanto Yêdamaria mostra a beleza das formas geométricas reforçadas por nomes objetivos como Barcos, Barcos com frutas, Barcos na rampa etc, Guilherme chama seus veleiros vazios de ação humana de Você entendeu que vem de lá, É o mar de quem espera, Eu cantaria o caminho inteiro ou A gente tá sempre à espera.
As velas aparecem mais ou menos explícitas em todas as obras, ora hasteadas,  movimentando-se, como em Juazeiro e Primeiro emprego em São Paulo, ora difíceis de identificar, porque é a paisagem natural que ganha relevo em uma síntese agradável de forma e cor. Em S/título I e Vou de carona, ambas as obras são organizadas em tonalidades noturnas, entre verdes e azuis esverdeados, que lembram as cores usadas por Tarsila do Amaral (1886-1973) em A lua, 1928, na fase surrealista da artista.
Guilherme nasceu no Rio de Janeiro, em 1987, mas o mar carioca não o atraiu tanto quanto as recordações do quintal da casa da avó. Lá, o contato corporal com os lençóis secando e o vento que os balançava oferecia um refúgio macio. Em uma de nossas conversas, ele sublinha que herdou de seus avós a sensação de estar sempre fora do lugar. Vindos da Paraíba, na década de 1950, a chegada e fixação daqueles parentes foi carregada de melancolia, efeito do deslocamento forçado de Cajá, a terra natal sem mar. Uma obra que evoca essa sensação é Vim com ele e nossos filhos, quando Guilherme demonstra seu gosto pelos tons justapostos, assim como em outras obras desta série. Uma faixa em L nesta obra apresenta variações discretas de azul escuro, que ocupa o primeiro plano de uma composição em beges, amêndoa, linho, castanhos, cáqui e marrons. Contudo seja uma pintura limpa, a aposta nestas cores evoca em alguns momentos a aridez dos marrons utilizados por Cândido Portinari (1903-1962), em obras como Marias, 1936, quando a terra acende ao céu, sujando-o de chão. Finalmente, se pode vislumbrar as tonalidades da areia à beira mar em obras como Eu cantaria o caminho inteiro, A gente tá sempre à espera, Essa volta mexe tanto comigo, S/Título II e Flor de mandacaru.
Em nossa primeira conversa, Guilherme disse algo que me ajudou a entender sua pesquisa pictórica em torno do mar nordestino idealizado nesta série: “Geometria é boa pra mim,  porque estabelece limites”. Essa observação aparece em um momento em que parcela importante dos artistas negros contemporâneos escolheram a figuração realista, a descrição das coisas, pessoas, recordações e experiências. Porém, à semelhança de outra parcela de artistas, Guilherme optou pela figuração geométrica, que lhe ajuda a atingir seus objetivos poéticos.
Pra vela não se apagar, o título da exposição escolhido por Guilherme, faz um trocadilho entre a vela de pano e a vela de parafina usada durante as apresentações do Samba da Vela [3], onde uma vez aceso o pavio, a vela morre aproximadamente em três horas de cantoria. A pintura, ao contrário, fixa, pede contemplação demorada, pois Guilherme é um artista exigente que descarta o que não considera resolvido. Assim, a geometria construtiva e delicada que vemos em sua poética oculta uma relação passional com cada nova composição.
Agradeço ao Guilherme pelo convite para pensar com seus trabalhos sobre os destinos da arte brasileira atual, e à Janaina Torres e sua equipe por operacionalizar no diálogo a produção deste projeto.

[1] KUNZINKA, Emanuel. Dicionário de provérbios kikongo. Luanda: Editorial Nzila, 2008. p.165.
[2] ANDRADE, Mário de. O Mar. In: Táxi e Crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005. p. 433-435.
[3] Nome de uma roda de samba que foi criada na cidade de São Paulo no ano 2000 pelos músicos Paquera, Maurílio de Oliveira, Chapinha, Magnu Sousá.

Alexandre Araujo Bispo é antropólogo, cientista social, crítico de arte, curador, pesquisador e produtor cultural.

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