Os trabalhos recentes do artista Gabriel Pitan Garcia foram desenvolvidos num arco temporal que recobre um período ainda elaborado a duras penas por quem o atravessou1, num momento em que certas relações com as noções de contato físico e superfície têm sido pelo menos momentaneamente reposicionadas e revistas. De algum modo, eles apostam na dimensão do gesto, marcado a um só tempo pela descompressão, pela descrença e pelo desencanto.
Constituem um conjunto de desenhos realizados em grande escala, com formatos variados, construídos com papéis diversos — seda, alumínio e papelão, para citar alguns —, arranjados, justapostos, remendados com cola e fitas autoadesivas, marcados por uma palheta monocromática que privilegia o cinza e uma luminosidade plúmbea. “Luz plúmbea de novo, espessa, saturnina, atravessada de contracorrentes, escorrendo em funis de fundo claro, quem sabe, eu deveria dizer ar, luz que aspira”2.
Certa tormenta, um torvelinho na cabeça e na alma, lateja nos traços evidenciados pelos mais variados estados de ânimo, dilatados pelas superfícies com texturas diversas: traços duros, interrompidos, estilhaçados, feitos com grafite, mais deslizantes e caligráficos quando realizados com nanquim, mais borrados e fugidios executados com carvão, ou mesmo mais contínuos e uniformes se produzidos com caneta permanente. Ainda acerca desse torvelinho, não é fortuita a presença cinética da espiral, do tornado, do redemoinho — uma dada voragem —, que é recorrente neles.
Alguns desses desenhos parecem ter sido rotacionados, produzidos a partir de diferentes pontos vetoriais e multidirecionais, e depois, conforme se disse, colados, justapostos, trazendo uma série de acontecimentos pulsionais explosivos em pequenos quadros. Não fosse pela escala agigantada, seria possível aproximá-los tanto de histórias em quadrinhos como das “charges” do Picasso (1881-1973) nonagenário3, além dos desenhos de Jean Cocteau (1889-1963), sobretudo os que ele produziu com marker4, no caso daqueles de linha mais contínua e uniforme feitos com caneta permanente.
Se, em desenhos anteriores, ao brincar consigo mesmo, Gabriel Pitan Garcia apresentava uma espécie de autoescrutínio a toda prova — desenhos que eram mais centrados em sua autoimagem —, aqui, neste conjunto inédito, desenvolvido no último biênio e apresentado em exposição individual na Janaina Torres Galeria, em São Paulo, o artista esquarteja o corpo, desmembrando-o, trazendo-o mergulhado numa atmosfera delirante, agitada e febril, também marcada por uma experiência interior na qual “não há mais existência limitada”: “Um homem não se distingue em nada dos outros: nele se perde o que em outros é torrencial. O preceito tão simples: ‘seja esse oceano’, ligado ao extremo, faz ao mesmo tempo do homem uma multidão, um deserto”5.
Logo, ainda que reconheçamos alguns traços fisionômicos do artista, como o nariz aquilino — em alguns momentos com tratamento próximo do humor e do exagero caricatural da charge —, os lábios carnudos, os olhos soturnos endereçados a um ponto de fuga virtual, os cabelos cacheados, tatuagens ou sua silhueta, esses acabam atuando como uma espécie de espelho turvo no qual, em alguma medida, também nos vemos, nos reconhecemos.
Diante da profusão de acontecimentos nessas superfícies trabalhadas, desenhadas, escritas6, um elemento recorrente é esse olho que espia, analisa, encara e ao mesmo tempo nos coloca na condição de voyeurs.
Outro aspecto que poderia ser considerado na leitura destes desenhos é o solipsismo. Ainda que eles tenham sido produzidos num contexto onde algum isolamento e certo distanciamento eram vividos por muitos corpos, talvez fosse mais estimulante e produtivo pensar nas relações estabelecidas entre o corpo e o espaço doméstico — a casa — e na paranoia inerente a ele, revelado na cacofonia de elementos e materiais ordinários, fragmentados e presentificados na evidência física dos trabalhos: o barrado da cortininha de organza, o pano de prato, a embalagem que mais parece um tampo de caixa de pizza, o papel-alumínio. “E talvez ele chegou naquele estágio do seu instante quando viver é vagar sozinho no fundo de um instante sem limites, onde a luz não varia e onde os destroços se parecem7”. Algo de uma experiência de solidão na qual talvez reste ao artista brincar consigo mesmo.
Thiago Honório é artista plástico, Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, e Mestre em Teoria e História da Arte e Doutor em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo – ECA/USP.
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* BECKETT, Samuel. Malone morre. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p. 11.
1. Refiro-me à pandemia de covid-19, ainda que jamais tenha sido tematizada por esses trabalhos, mas também à cota de trauma que ela deixou e ainda parece ecoar endemicamente.
2. BECKETT, Samuel. Malone morre, op. cit., p. 139.
3. STEINBERG, Leo. “O fim de partida de Picasso”. Ars: Revista de Pós-Graduação em Artes Visuais do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da STEINBERG, Leo. “O fim de partida de Picasso”. Ars: Revista de Pós-Graduação em Artes Visuais do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 9, pp. 24-35, 2007.
4. Ver GUÉDRAS, Annie. Le Monde de Jean Cocteau 1889-1963. São Paulo: Museu de Arte Brasileira/FAAP, 1997; ______. Ils: Dessins érotiques de Jean Cocteau. Paris: Le Pré aux Clarcs, 1998.
5. BATAILLE, Georges. Experiência interior. São Paulo: Ática, 1992, p. 35.
6. Aqui poderia recorrer novamente a Jean Cocteau, que diz “escrever, para mim, é desenhar, entrelaçar as linhas e de maneira que se façam escritura, ou desentrelaçá-las de um jeito que a escritura vire desenho”. In: DERDYK, Edith. Disegno, desenho, desígnio. São Paulo: Editora SENAC, 2007, p. 23.
7. BECKETT, Samuel. Malone morre, op. cit., p. 75.