Criador de universos paralelos, construídos, via de regra, a partir da fotografia, Feco Hamburger sente-se igualmente à vontade, em sua inquietude, em registros documentais. Exemplo disso é a série de fotografias sobre a cerimônia do Kuarup, que Feco registrou durante uma expedição às aldeias Aldeia Kamaiurá, Yawalapiti e Amaru, em 2018, no Alto Xingu. Surpreendido por um eclipse lunar durante a cerimônia, Feco enxergou ali uma ponte entre o movimento do mundo, rituais ancestrais e os desafios atuais do que chamamos civilização. “O eclipse poderia ser apenas uma evidência de que a Terra é redonda. Hoje, eu diria que o eclipse estava sinalizando os tempos sombrios que temos que enfrentar”, diz o artista, que detalha mais sobre essa experiência na entrevista a seguir.
Mesmo sendo um fotógrafo-artífice da experimentação formal, seu trabalho tem um forte apreço à paisagem. Por quê?A paisagem está presente em meu trabalho como uma maneira de reforçar a reflexão sobre a natureza humana. Mesmo no deserto, quando me volto para o pensamento sobre o dispositivo fotográfico, o movimento é de acrescentar à paisagem natural a camada de ação humana, através da fotografia. Em outras palavras, a fotografia e o modo de gerar a imagem trazem sempre, além do objeto fotográfico, informações sobre o gesto e sobre o olhar.
O deserto do Atacama, a flora de Porto Seguro e as montanhas do Iêmen já foram locações para as suas lentes. O que te levou ao Xingu?
Conhecer a natureza do Xingu foi uma nova investigação diante da natureza das coisas. Ali estão colocadas tanto a natureza cultural das etnias que ali vivem, como a exuberância da porção sul da Amazônia, em área de transição entre o cerrado e a floresta tropical. A convite de Mônica Martins, Juliana Freire e Anuiá Amarü, fiz parte de um grupo heterogêneo aberto à experiência de conhecer um mundo tão novo quanto milenar; que parecia tão distante e que se mostrou tão próximo, com sua gigantesca riqueza cultural e seus conflitos da natureza e da humanidade, como se fosse possível separá-los. Acompanhei a pesca para a refeição do dia, o preparo da mandioca, a roda de conversa ao redor do fogo com histórias ancestrais e piadas contemporâneas. A liberdade das crianças em meio ao risco da onça. A partilha do fumo do pajé Barriga. As águas ameaçadas pelo impacto das usinas hidrelétricas e dos produtos químicos da soja no entorno. A paisagem resistindo à extração ilegal e predatória da madeira, das plantas e dos animais. O Kuarup é um ritual fúnebre com aspectos políticos do encontro entre as tribos, de forte carga emocional e que engloba a discussão prática e objetiva dos problemas mundanos. Exemplo de uma política pacífica e respeitosa, que se mostra na cerimônia toda: desde o preparo dos troncos, passando pelo peixe moqueado oferecido a todos os convidados, pela dança e até no huka huka, luta concreta e também simbólica.
Você diz que o eclipse que presenciou sinaliza os tempos sombrios que vivemos hoje. Em que medida?
Creio que a situação peculiar do Alto Xingu, e a inevitável contaminação de modos de vida distintos, traz à tona importantes questões para os dias de hoje: como lidar com a diferença, como equilibrar o desenvolvimento social com a exploração dos recursos naturais, como dialogar com diferentes narrativas para o encontro de soluções comuns. Um eclipse lunar na noite do Kuarup sombreou uma espécie de microcosmo ou miniatura dos entraves globais, em que a lógica e as consequências de nossas ações impõem novas reflexões sobre o mundo em que vivemos e que gostaríamos de deixar para as próximas gerações.
A seguir, mais imagens resultantes da expedição.