Força estranha: como a cerâmica se tornou o meio do momento na arte contemporânea - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Força estranha: como a cerâmica se tornou o meio do momento na arte contemporânea

22 de fevereiro de 2023 | 15:37
Ubiratan Muarrek

A cerâmica não foi feita para ocupar galerias de arte. São outras as funções dessa técnica ancestral: servir o chá, abrigar plantas, ornar mesas de centro, revestir a parede do banheiro ou amparar um abajur. A doméstica e utilitária cerâmica é artesanato — design, no máximo — e jamais poderia ocupar o olimpo das grandes ideias e formas significantes, que é o monopólio da arte.

Isso, claro, até ontem. Porque desde o célebre ultraje perpetrado por Ai Weiwei, ao atirar no chão um vaso da milenar dinastia chinesa Huan, em 1995, a cerâmica deixou de ser uma aparição esparsa no cenário artístico do século 20 —  em trabalhos de Ron Nagle, Ken Price, Peter Voulkos e Betty Woodman, entre outros — para avançar e ocupar o centro das atenções, atraindo nomes de peso, ganhando mostras e publicações de respeito e renovando o vocabulário da escultura contemporânea.

Chegamos ao ponto de a arte da cerâmica ser considerada “o meio do momento”, como afirma a ArtBasel.com, tomando por base não apenas a relevância de artistas que trabalham com esse material e que estarão presentes na temporada de feiras de arte de Miami, neste dezembro de 2022 — seleção que inclui trabalhos em cerâmica de Paula Juchem, representada pela Janaina Torres Galeria, que serão exibidos na Pinta Miami.

Ai Weiwei, Dropping a Han Dynasty Urn, 1995. Impressões em prata gelatinosa, 148 x 121 cm cada.

Ai Weiwei, Dropping a Han Dynasty Urn, 1995. Impressões em prata gelatinosa, 148 x 121 cm cada.

A ArtBasel também se refere a outros marcos na ascensão aparentemente incontornável da cerâmica na escala de nobreza nas artes visuais, a partir dos anos 90, sendo a mostra coletiva Strange Clay: Cerâmica na Arte Contemporânea, em exibição neste outono europeu na Hayward Gallery, de Londres, a mais recente tentativa de se conhecer a vasta gama de trabalhos em cerâmica que estão sendo produzidos por artistas contemporâneos.

É peculiar, de fato, como coloca o título da coletiva, o estranhamento provocado pelo uso do barro ou argila nos domínios da fine art, dado o caráter eminentemente familiar, utilitário ou decorativo, que a cerâmica ocupa na vida contemporânea. Como os organismos enormes e exuberantes, dourados, cor-de-rosa e azuis que Takuro Kuwata faz adentrar o espaço da Hayward — esquisitos e atraentes ao mesmo tempo.

Vista de instalação das obras de David Zink Yi e Salvatore Arancio na exposição ‘Strange Clay’: Cerâmica na Arte Contemporânea’, Hayward Gallery, Londres Vista de instalação das obras de David Zink Yi e Salvatore Arancio na exposição ‘Strange Clay’: Cerâmica na Arte Contemporânea’, Hayward Gallery, Londres
Vista da instalação de Takuro Kuwata, em ‘Strange Clay’: Cerâmica na Arte Contemporânea’, Hayward Gallery, Londres Vista da instalação de Takuro Kuwata, em ‘Strange Clay’: Cerâmica na Arte Contemporânea’, Hayward Gallery, Londres

Efeito semelhante consegue Salvatore Arancio, que opera quase na mesma escala de Takuro, com os longos e brilhantes postes psicodélicos emergindo de montes de rocha vulcânica. Ou a enorme lula de argila de David Zink Yi, deitada sobre uma espécie de gosma marrom no meio do espaço, obra na qual a esquisitice radical e escorregadia da argila foi levada bastante longe.

Mulheres-pássaro, vagabundos com cara de cavalo, jarras e tigelas antropomórficas, batalhões de ratos e lesmas que lutam em um apartamento que se tornou uma zona de guerra: em Strange Clay, é como se a familiaridade com o meio — quem nunca enfiou os pés na lama ou brincou com o barro? — permitisse todas as aventuras possíveis, e autorizasse os artistas a explorar livremente dimensões sociais, históricas e políticas em peças de grande intensidade psicológica e emocional.

Combinação similar — familiaridade e estranhamento — encontra-se em Criatura, individual de Paula Juchem que é exibida até dezembro, em São Paulo. Tensionando os limites entre realidade e fantasia, Paula povoa a galeria de objetos fantásticos, totens alucinógenos e fragmentos de formas biológicas que aparecem por entre camadas e acúmulos de argila e esmalte (o formato híbrido entre escultura e pintura é outra qualidade da cerâmica, diga-se).

Vista da individual Criatura, de Paula Juchem, em exibição na Janaina Torres Galeria / Foto: Ruy Teixeira

Vista da individual Criatura, de Paula Juchem, em exibição na Janaina Torres Galeria / Foto: Ruy Teixeira

“As criaturas [de Paula Juchem] são um convite a nos familiarizarmos com uma ideia nova de convivência ecológica, que responde às reações provocadas pela presença humana na terra”, diz a curadora da mostra, Livia Debbane, que enxerga poderes regenerativos na ação do fogo sobre o barro. “No limite, neste Antropoceno, uma Criatura recoloca o homem na natureza, de onde ele não deveria ter se apartado e de onde não pode escapar”.

A cerâmica atende, assim, ao chamado do nosso tempo, e essa é também a crença de Cliff Lauson, curador de Strange Clay. Trata-se, inclusive, de uma virada cultural mais ampla, em direção ao artesanato e à lentidão — um chamado particularmente pertinente no período pós-pandêmico e a forma com que voltamos a nos relacionar com as coisas do mundo. Localizadas na história humana pela primeira vez em 9.000 a.C, a cerâmica criou uma afinidade e uma força inédita no século 21.

“Há um tempo, a vulgaridade da cerâmica poderia ser um problema”, diz Cliff. “Mas, com o avanço da cultura digital, o colapso ambiental, e uma pandemia, o imediatismo físico e os métodos antiquíssimos da cerâmica são seus pontos fortes”.

Ubiratan Muarrek é escritor e jornalista

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