Por Luciara Ribeiro *
A dimensão do encontro marca este texto. Encontro de processos artísticos, de leituras e de vidas. Conheci Sandra Mazzini quando ainda éramos estudantes de graduação, estagiárias em um projeto de arte-educação. Naquele momento, em 2011, nossas relações, pessoal e profissional, estavam entrelaçadas pela convivência do dia-a-dia, pela troca no processo educativo e no entusiasmo de duas jovens estudantes de artes. Voltamos a nos encontrar no início do ano passado, de forma virtual e, em meio à pandemia da COVID 19, realizamos chamadas virtuais para resgatar as memórias e entendermos nossos novos processos. Ao longo desse quase um ano e meio, agora, como duas educadoras em novas posições, uma como curadora e outra como artista, trabalhamos para entender como construir aproximações entre nossos trabalhos. Entendemos que havia algo em comum que nos interessava, talvez uma certa curiosidade pelas maneiras possíveis de olhar o campo das artes, por construir discursos e imagens, por não anular a dimensão da vida diante do absurdo de mundo no qual vivemos.
Não estávamos com pressa. De algum modo, sabíamos que tal etapa era apenas o curso de um processo, e que o resultado chegaria ao final dele. Realizamos alguns encontros, entre reuniões virtuais, visitas ao ateliê, almoços, idas a exposições, e debatemos conceitos das obras. O processo construído com Sandra Mazzini e seu trabalho foi de um vai e vem, de afasta e aproxima; talvez por isso, a minha escrita aqui se faça marcada por vias afetivas, mas que não desconsidera o caráter crítico. Entendo que a análise de curadoria-pesquisa diante do trabalho artístico exige certas distâncias; no entanto, elas não podem ser tão longas que impeçam também o aproximar.
Políticas da paisagem
Observar as mudanças na obra de Sandra Mazzini foi um passo que envolveu pensar teorias da imagem, processos criativos e a recepção deles. Mazzini é uma artista que busca, na paisagem, maneiras de flertar com o real e o imaginário. O seu processo se inicia com a busca por interiores arquitetônicos que ela nunca visitou. Em uma incansável pesquisa nas páginas digitais da internet, reúne um conjunto de imagens que serão recortadas, remontadas e transferidas da tela digital para a tela da pintura. Antes disso, ela adiciona os elementos que sente falta; geralmente, refere-se a uma variedade de vegetação, com plantas de todos os tipos, sons e tamanhos.
A paisagem onírica, misturando dentro e fora, realidade e ficção, parece representar um tempo suspenso e distante da realidade dura da vida. Apesar desse espaço de ficção, não podemos deixar de ver ali os elementos do real. Reconhecemos todos eles, e facilmente, conseguimos adentrá-los. E, nesse pensar a paisagem no transitar entre mundos, lembro-me de uma de minhas grandes referências, o professor e geógrafo Milton Santos, também um dos maiores teóricos brasileiros. Santos, em seu livro “Metamorfoses do espaço habitado”, definiu a paisagem como “tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança” e que “pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca”. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc. É interessante como ele adiciona as sensações geradas ao corpo quando se contacta com a paisagem, que, de algum modo, nos indica que é preciso sentir a paisagem para fazê-la existir. Obviamente, Santos não falava da paisagem artística, mas da paisagem geográfica e sócio-política. Porém, me toca pensar que nas relações artísticas também ocorre algo semelhante.
É preciso sentir a paisagem para fazê-la existir, para senti-la, para adentrá-la. No processo visual de Sandra Mazzini, as paisagens nos tocam para além do visível, podendo haver sons, sensações, repulsas. Podendo nos convidar a nos imaginar caminhando, habitando ou espiando seus detalhes. Talvez esteja aí também outra dimensão do afeto, uma preocupação com quem vê, com quem estará na frente da tela. Talvez nesse gesto de envolvimento construa reflexos dos mundos de quem cria e de quem visualiza.
Políticas do real
Com o trabalho alicerçado na paisagem recortada, inventada e recriada, Sandra Mazzini apresenta obras que reorientam os espaços do real em um intenso trânsito entre o que se vê, o que se imagina e o que se pode elaborar. Seu processo inicia-se na busca por imagens em um mundo habitado por elas, por interiores ocupados que passam a ser desocupados, ou vice-versa.
Interessa a ela hibridar o convívio do real e do artificial e, apesar de suas paisagens serem editadas e montadas, elas não deixam de ser construções do real. Para pensar a obra de Mazzini e as políticas construídas em suas imagens, recorro a Philippe Dubois, teórico francês que se dedica a pensar o campo da imagem, em especial as fotográficas. Em seu famoso ensaio “O ato fotográfico”, Dubois nos provoca ao concluir que toda criação parte de um traço do real, mesmo aquelas imaginadas. A realidade é o nosso ponto de partida, é o nosso conhecido e de onde conseguimos nos identificar.
Em seu processo, Sandra Mazzini recorre a relações enredadas entre fotografia, imaginação e pintura. Se um dia, a fotografia almejou os cânones da pintura, hoje, ambas se conectam em uma linha pouco distante e que muitas vezes são tensionadas ou amalgamadas. O trabalho de Sandra Mazzini parte da imagem fotográfica, mas não se limita nela, pois é na pintura que ela se forma e se efetiva. É a pintura o seu marcador do real, é a provedora de existência. São lugares que ela não conhece e onde nunca esteve. Mas, talvez, na ânsia de estar, tome-os para si em imagem. É um roubo da paisagem disponível no mundo digital, mas também a seleção daquelas com as quais deseja conectar. São paisagens inventadas que se tornam reais quando pintadas, quanto viram mais um elemento habitante deste mundo e tempo. É um trabalho de dedicação e exaustão, e que, em um gesto de partilha, podemos aqui, com nossas percepções, adicionar novas camadas.
Os caminhos se cruzam, mas não se fecham
E, do mesmo modo, entre os encontros da pesquisadora e da artista, entre ateliê e sala expositiva, dilatamos neste período as nossas distâncias e reativamos as memórias de já uma década, desde aquela primeira experiência de estágio. Cada tela materializa também as incansáveis horas no ateliê, as incontáveis pinceladas e as conversas encontradas, que fazem parte da negociação com um processo total e repartido. Assim se faz afetiva a obra de Sandra Mazzini e nossos encontros.
* Luciara Ribeiro é curadora.