Dissolver a paisagem, dissipar a ideia: as pinturas de Pablo Ferretti - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Dissolver a paisagem, dissipar a ideia: as pinturas de Pablo Ferretti

28 de janeiro de 2023 | 12:40
Mariana Leme
Vista da individual Clarão, de Pablo Ferretti, na Janaina Torres Galeria Vista da individual Clarão, de Pablo Ferretti, na Janaina Torres Galeria

1. Preâmbulo

Gostaria de ser levado de novo para os dioramas, cuja magia brutal e imensa sabe me impor uma útil ilusão. […] Essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria de nossos paisagistas são mentirosos, justamente porque negligenciaram mentir. — Charles Baudelaire, Salão de 1859

Em meados do século XIX, o crítico e escritor francês Charles Baudelaire lamentava a falta de inventividade das pinturas de paisagem que viu no Salão e afirmava que gostaria de “ser levado de novo aos dioramas”, dispositivo ilusionista de apresentação de imagens, cujo exemplo mais célebre foi feito por Louis Daguerre e esteve em cartaz em Paris, entre 1822 e 1842. Para Baudelaire, a pintura de paisagem só seria “verdadeira” na medida em que fosse mentirosa, falsa, imaginativa; isto é: a matéria da paisagem submetida à criação humana. “Sim”, afirma ele, “a imaginação faz a paisagem”. 

Não se trata de uma ideia nova, mas de um pressuposto caro ao pensamento ocidental — e à história da arte — desde pelo menos o Renascimento, segundo a qual o Homem (europeu) estaria acima de todos os outros seres vivos e não vivos, e que a “natureza”, ou a paisagem, se “é bela, não o é por si mesma, mas por mim, por minha própria graça”, para citar mais uma vez o crítico. Em outras palavras, a natureza só existiria para satisfazer desejos humanos.

Apesar de sedutora, tal formulação traz em si uma profunda violência que nós, habitantes de uma ex-colônia, infelizmente conhecemos bem. A supremacia de alguns poucos que se definiram como “brancos” autorizou  — e segue autorizando — a brutal espoliação de mundos e modos de vida transformados em paisagem estática, supostamente disponível para consumo e descarte. 

O deleite proporcionado por uma pintura paisagem, portanto, está longe de ser ingênuo e pode reiterar a fantasia de superioridade humana e das suas “luzes”. Mas como sugere o título desta exposição, luz em excesso pode cegar.  

Pablo Ferretti, Solver, 2022, Óleo sobre tela, 154 x 130 cm Pablo Ferretti, Solver, 2022, Óleo sobre tela, 154 x 130 cm

2. Solver

As pinturas de Pablo Ferretti reunidas em Clarão podem parecer paisagens, à primeira vista; um clarão é tanto uma luminosidade intensa, quanto uma clareira, espaço aberto na floresta. Mas as pinturas não são paisagens, apesar de inventivas e artificiosas, como teria gostado Baudelaire, talvez, e os pintores do Rococó. 

Uma das pinturas, Solver, é formada por manchas de cores diluídas, que criam uma relação vibrante, quase atmosférica. As cores não são “naturais” — lilases, rosas, amarelos e azuis esverdeados quase fosforescentes são raras na natureza e nas pinturas de paisagem —, embora exista uma sugestão de horizonte, a um pouco menos de 2/3 da parte inferior. Ferretti “dissolve” as expectativas de quem vê a pintura e procura ali algum sentido literal. O artista parece jogar com a tendência do observador em “ler” ou decifrar imagens, como se as formas — matéria — fossem submetidas ao tema — ideal, teórico. 

O mesmo se dá em Insolar: o desejo frustrado de ver ali uma espécie de atmosfera romântica, dramática, ou um céu carregado de subjetividade. Manchas cor-de-rosa, alaranjadas, amarelas e azuis formam a composição vacilante e, de alguma forma, “aérea”. Duas manchas pretas — uma delas velada pelo rosa, outra aplicada sobre ele, deixando evidente a trama do suporte — parecem impedir o devaneio. As manchas escuras criam um ruído, e fazem lembrar que aquilo que se vê não é um céu dramático: é, antes de tudo, pintura. 

Pablo Ferretti, Insolar, 2022, Óleo sobre tela, 100 x 130 cm Pablo Ferretti, Insolar, 2022, Óleo sobre tela, 100 x 130 cm

Assim, de maneira sutil, os trabalhos negam uma paisagem que exista apenas “por minha própria graça”, humana. As pinturas existem em si mesmas e são superficiais no melhor sentido do termo, na medida em que recusam a “profundidade” intelectual tão cara ao Ocidente, pretexto e justificativa das mais diversas hierarquias. Aliás, seria impossível a existência de pinturas não fosse o caráter material de sua superfície. 

Superfície que também parece estar no âmago de alguns dos trabalhos, como Findão, que lembra uma parede descascada, ou Tergiverso, em que algumas formas de cor escura foram veladas em branco, mas não desapareceram completamente. Entrear, uma pintura diminuta em tons de azul esverdeado, não se parece com nada “real”, mas convida o espectador a olhar de perto todas as camadas que se depositaram ali, com uma mancha escura no centro da tela e pequenos fragmentos de cor-de-rosa do fundo que não foram cobertos.

Se o deleite de quem vê uma pintura de paisagem não tem nada de inocente, a prática da pintura a óleo também não. Três dos trabalhos — Clareira, Limiar e Sobrenado — lembram uma fatura impressionista, movimento pouco coeso considerado precursor da arte moderna, de renovação e/ou ruptura de uma tradição europeia de pelo menos quatrocentos anos. Nas palavras, talvez apócrifas, atribuídas a Leonardo Da Vinci, a pintura seria cosa mentale, feita com o intelecto e não com as mãos — ideologia persistente, embora muito distante do real trabalho de ateliê. Os impressionistas fizeram questão de evidenciar a tinta e as cores, muitas vezes se valendo da paisagem apenas como pretexto: a pintura é coisa material.

3. Clarão 

A já citada pintura Solver evidencia outro aspecto interessante, a respeito da materialidade da pintura. Sobre as manchas de cores pouco “naturalistas”, mas construídas pelo artista, Ferretti depositou, direto do tubo, algumas manchas de azul escuro. O mesmo acontece em Delir, com fragmentos de verde e vermelho depositados sobre as cores mais trabalhadas do fundo.

A tinta industrial tal qual foi preparada contrasta com a complexidade dos tons alcançados pelo artista e parece sugerir que não se trata simplesmente de “óleo sobre tela”, mas de um lento e cumulativo trabalho de misturas, dissoluções, relações, erros e acertos, quase sempre provisórios. Aliás, mesmo os títulos das pinturas são vacilantes e se esquivam de interpretações ou “leituras”: Sobrenado, Findão, Entrear, Insolar… A ideia autoritária de uma cultura letrada parece se dissipar, em favor da matéria.

Apesar das considerações acima, os trabalhos de Ferretti não têm um caráter abertamente político. Mas as pinturas de cores vibrantes e bastante diluídas nos convidam a imaginar outros mundos, atmosferas antinaturais de lugares que não existem, inventados pelo artista. Se as pinturas não representam paisagens, elas existem em sua natureza pictórica, com qualidades específicas de cor, luz, formas e superfície, independentes do que lhes é externo.

Para além da definição ocidental, há muitos outros sentidos que “natureza” pode comportar. E um clarão talvez possa desestabilizar, momentaneamente, nossas certezas.

Mariana Leme é curadora

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