Livia Debbané
“os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara
sem uso
ela nos espia do aparador”
poema Cerâmica, de Carlos Drummond de Andrade
A cerâmica é um ofício de regras incontestes, pois seu êxito depende da transformação da matéria por fenômenos químicos, num equilíbrio fino entre os processos. A formação de um ceramista é longa, pressupõe repetição e persistência.
Paula Juchem não se considera ceramista. Trabalhava como ilustradora em Milão quando, em 2007, participou de um workshop em Ravenna, referência da produção cerâmica na Itália. Foi a primeira vez que transportou seus desenhos para a argila. O campo que então se abriu a capturou de imediato.
Desde aquele primeiro contato, Paula explora limites à medida que avança no aprendizado. O caráter destemido de sua atitude reflete a liberdade que experimenta no papel. Pois desenhar, atividade original de Paula, é deixar fluir a conexão entre sinapses e movimento das mãos. Razão e execução influenciam-se mutuamente, sem hierarquia. Ela quer conquistar na cerâmica espaço semelhante, no qual é possível adicionar, apagar, consertar, dar pequenos truques, ou simplesmente recomeçar.
O gesto que imprime forma no plano bidimensional torna-se mais complexo ao adentrar a tridimensionalidade. Seu primeiro golpe acontece logo que as peças saem do torno do oleiro, úmidas e moldáveis. O vaso, então simétrico, é investido de depressões, o que o afasta de arquétipos. Paula pede ao artesão que os instrumentos sejam deixados sujos na troca entre diferentes compostos de terra; assim, o trabalho anterior contamina o próximo. Essa mistura de matérias é pouco habitual.
A ornamentação começa com o aplique de relevos, que determinam as áreas nas quais aparecerão as cores. Esses volumes, grudados à superfície como plantas parasitas, resolvem ser mais abundantes no topo dos vasos – o que não é recomendável, pois o peso na borda risca rachar a peça na secagem ao ar livre, ou estourá-la no cozimento em forno elétrico. Os fragmentos desventurados são transformados em poeira e misturados aos esmaltes, a criar mais uma camada de textura. Depois da segunda queima, que fixa a tintura vítrea, a cerâmica pode ser considerada pronta. Mas ainda recebe decalques serigrafados e uma nova queima. O flerte com o excesso, na sobreposição de massa, tinta, cores e técnicas, é constante e tende a se intensificar na obra de Paula Juchem.
O que singulariza uma produção cerâmica é o embate entre norma e intenção. Em outras palavras, a construção da linguagem se faz nos métodos heterodoxos desenvolvidos por cada autor. Agrada a Paula criar os seus no domínio do que se considera impróprio. O resultado, muitas vezes, não suporta a irreverência. Há erros e perdas no processo.
Seria forçoso traçar a linhagem dessas cerâmicas ou relacioná-las a outra manifestação do fazer milenar de recipientes utilitários, ritualísticos e simbólicos. Paula Juchem não se sentiria confortável em inserir-se nesta densa tradição. Ao lançar mão do repertório de traços e colorido que ela amadurece há anos, e que portanto é só seu, Paula apenas responde o que o entusiasmo das descobertas lhe sugere.