Por Andrey Guaianá Zignnatto *
O grande pensador contemporâneo indígena Davi Kopenawa fala sobre um céu que está em situação de queda. Outro tão importante pensador indígena, Aílton Krenak, fala sobre como encontrar meios para adiar o fim do mundo. Ambos discutem nestes pensamentos questões sobre o contínuo processo de extinção dos povos originários e seus universos ancestrais que habitam os territórios hoje conhecidos como continentes americanos.
Mas e quando o céu já foi derrubado, e o mundo já foi extinto, o que fazer?
Eu sou artista descendente por pai dos povos Tupinaky’ia Guaianás que habitaram os territórios onde hoje é chamado São Paulo, etnia indígena que sofreu apagamento total de seu universo ancestral. O que restou deste povo e seu universo são alguns relatos em textos produzidos por seus colonizadores. Por parte de minha mãe, descendo dos Guarani Mby’a, povo que me tem auxiliado num processo pessoal de retomada como aba [homem] indígena.
Apoiado sobre essas poucas memórias que me sobram como herança, na arte e suas muitas potencias, me esforço para desenvolver um processo de reflorestamento do universo ancestral de minha família, esforço que se inicia no território de meu próprio pensamento e espírito. A reconstrução desse Tekoa** toma forma em cada trabalho produzido durante estas pesquisas, e pode se expandir para muitas dimensões durante cada exposição na experiência do contato entre o público e cada trabalho.
CO YBY ORE RETAMA [Esta Terra é Nosso Lugar], título da exposição no Museu da Cidade de São Paulo, local exato onde antes do período colonial paulista foi Inhapuambaçu, aldeia Tupinaky’ia, é o retorno de um Tibiriçá ao lar original de sua família, mesmo que desta vez por um curto período, onde muitas outras pessoas são também generosamente convidadas para habitar esse Tekoa, território físico, mental e espiritual.
Os trabalhos nela expostos podem também ser considerados um meio de demarcação indígena tanto do espaço físico da exposição, do circuito das artes visuais, do território subjetivo da arte e do imaginário de cada pessoa do público presente na exposição. Os outros locais escolhidos para receber exposições que servem como extensão desta realizada no Museu Solar da Marquesa [Galeria Janaína Torres, Ateliê Alê e Casa do Sertanista] também se encontram nas regiões da cidade de São Paulo antigamente habitadas por aldeias Guaianás.
A arte é o meio que encontrei para equalizar forças de universos muito distintos, as memórias afetivas de minha vida urbana e de minha experiência como pedreiro participante da construção de cidades, com minhas memórias ancestrais indígenas.
A partir de minha experiência pessoal como artista, considero o processo artístico, desde a manifestação da ideia, como sendo um momento onde o artista se vê tomado por um certo tipo de furacão com suas muitas potencias, suas formas irregulares e destino indefinido. Já a produção dos trabalhos artísticos vem como um esforço para construir algo que faça algum sentido juntando os escombros deixados pelo caminho por este furação. Arrisco dizer que esta é uma situação muito semelhante de estado, quando penso sobre todo o esforço dedicado para reconstruir um universo ancestral devastado pelo violento processo colonizador.
A arte é o meio possível que encontrei para equalizar forças de universos muito distintos, as memórias afetivas de minha vida urbana e de minha experiência como pedreiro participante da construção de cidades, com minhas memórias ancestrais indígenas. Essa equalização só foi possível quando percebi que era também necessário me colocar neste processo de certa forma desarmado e suscetível no trânsito por esses caminhos poéticos, da fusão destes universos para este mundo reinventado.
É possível afirmar que tanto a arte como os conhecimentos indígenas são em geral considerados irrelevantes pelas sociedades contemporâneas. E justo neste mundo onde estas sociedades vivem sob grande tensão submetidas a violentos processos de sufocamento, quem sabe isto que hoje é ignorado possa oferecer novas propostas para gerar momentos em que as pessoas encontrem ao menos um lugar para tomar fôlego. Espero que a exposição CO YBY ORE RETAMA possa servir como um desses lugares, e compartilhe anga [ânimo – alma] com o público que por ela passar.
* Artista plástico
** TEKOA literalmente, significa o lugar do modo de ser guarani, sendo esta categoria modo de ser (tekó) entendida como um conjunto de preceitos para a vida, em consonância com os regramentos cosmológicos herdados pelos antigos guaranis.