Por Alexandre Sá *
A situação é inusitada: máscaras, pistola, proteção, óculos, chapéu, compressor e alguns outros elementos que talvez não sejamos capazes de capturar. O artista está lá, vestido de branco e com a arma em punho. Parece sempre preparado para uma guerra específica em algum lugar inóspito. O espaço é um terreno abandonado de cor obtusa. O alvo do ataque (nesta primeira empreitada) são alguns destroços, elementos deixados ao longo de algum processo particular de construção e desconstrução, dejetos de alguma história que não somos capazes de compreender. Estamos então num local curioso, num recuo dentro de uma rua movimentada em um bairro do Rio de Janeiro. O sol, como era de se esperar, está voraz e termina auxiliando na impressão de que se trata de um deserto, de algum não-lugar (curiosamente particular) onde talvez nenhum oásis seja provável.
Contudo, Heleno Bernardi já está em ação com seus elementos, travando uma micro-guerra-íntima com o entorno. A luta aqui não é violenta, não é repleta de riscos e nem se parece em nada com aquilo que se espera em dias de caos. Trata-se de um duelo preciso entre o artista, o material, a especificidade do local e a poesia que se deseja produzir diante dos olhos e paradoxalmente, longe dos olhos esquecidos dos passantes diários que talvez nem sequer possam ter a liberdade de desviar a visão para perceber a transformação ocorrida naquela paisagem cinza, comum à rotina de uma grande cidade. O que esteticamente acontece ali é a lenta e gradativa transformação pictórica de um espaço qualquer e surpreendentemente, específico. Além de sua conseqüente transposição/deslocamento para um eixo particular de funcionamento semântico: a arte.
Heleno provoca aqueles elementos abandonados em si, em suas irregularidades natas, imprimindo-lhes uma forte camada de purpurina rosa. O método de trabalho é exaustivo, pois envolve uma densa dose de cola e posteriormente outra camada com a materialidade difusa//onipresente da purpurina e da vivificação de sua cor própria. Aos poucos, aqueles elementos redescobrem a possibilidade de suas existências objetivas (em conjunto) e, na pulsão de sua superfície produzida, tornam-se capazes de frutificar a precisão de sua existência espacial, objetiva e paradoxalmente, coletiva. Murmuram de maneira reverberada suas histórias industriais e gradativamente (num jogo de atração e repulsão) retomam a fala , redesenham seus próprios volumes no espaço e tornam-se responsáveis pelo nascimento de uma poética que atravessa o seu (ou seria o nosso? ) inelutável abandono.
Criticamente podemos considerar que o trabalho nasce do entrecruzamento de duas estéticas: a idéia do ready-made (e a sua debochada beleza da indiferença) e dos já conhecidos processos de site-specific. Sobre a aplicabilidade (absolutamente expandida) do conceito de ready-made, podemos (e devemos) ainda tentar revirá-lo um pouco mais, perseguindo um giro dentro do próprio conceito. Ao invés de pensarmos como sendo um objeto industrial passível de reflexão estética, resolvermos analisá-lo como sendo uma situação industrial possível de produção poética, de análise conceitual e paradoxalmente, de ligeira contemplação visual, que através da ação artística, é transformada de maneira plástica, mantendo ainda suas raízes e sua origem objetiva na realidade que as erige: o processo urbano (e por que não natural das coisas?!). Se o ready-made originalmente detecta uma possibilidade de experiência estética no produto finalizado, Heleno retoma esta possibilidade a partir dos dejetos deste objeto industrial (já sem nenhuma finalidade), para então recomeçar outro ciclo plástico.
O agente-artista opta por mergulhar numa esfera de trabalho que é originada pelas reverberações filosóficas do ready-made, mas que o ultrapassa e termina por produzir num certo “poem-objet-trouvé” de inquestionável qualidade. O artista (es)colhe o espaço possível para a sua empreitada poética, analisa-o, verifica a viabilidade da ação, para enfim realizá-la. E o “objeto-produto” em exposição existe como memória, como presença de uma ausência e como imagem.
Sendo assim, também podemos considerar o site-specific como um elemento estético que borda o universo referencial do trabalho. Trata-se então de uma intervenção realizada num local determinado, com suas características específicas e que abriga parte da ação artística. Esta por sua vez, será consolidada de outras formas em outros espaços. Aqui também podemos perceber um ligeiro deslocamento de tais métodos de funcionamento, pois se ao longo da História da Arte pudemos perceber que a intervenção feita pelos artistas em tais sites era mais da ordem física, quase escultural, Heleno Bernardi realiza uma intervenção físico-poética na esfera do visual dentro do espaço urbano através da instauração de um rápido golpe pictórico.
O que diferencia tal proposta de um trabalho de intervenção urbana é que essa ação de não traz embutida uma cobiça de alteração do fluxo da cidade através de uma inserção econômica ou geopolítica. O fio de corte do trabalho é poético e se produz pela materialidade da cor que, através de sua presença inusitada, constrói as possíveis camadas de experiência através de um intenso diálogo com as particularidades do espaço, dentro de um jogo intenso de pulsos relacionais; evidenciando de forma precisa sua existência lírica, sua materialidade efêmera, sua maturidade estética e sua entropia inevitável.
* Publicado na revista Santa Art Mazazine #1 – 2008