Entes - Janaina Torres

São Paulo Brasil

Entes

2 de março de 2024 | 11:57
Shannon Botelho

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Sem título (da série Territórios Imaginados)

Laíza Ferreira
Sem título (da série Territórios Imaginados), 2021
Colagem analógica
14.50 x 21.50 cm

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O futuro não existe, ele é apenas uma construção contínua que se define como um imperativo temporal intangível do que virá. Existirá, talvez, se cuidarmos do presente, que é a única centelha de realidade na qual podemos nos agarrar para lançar nas teias do tempo que se desdobra continuamente, ampliando o que conhecemos como passado e projetamos no porvir. O futuro, dessa forma, se caracteriza como um conjunto de anelos que catalisa passado e presente em latência. Ou melhor, ele é o agora em movimento. O passado, por sua vez, como definiu Wally Salomão, constitui-se como uma ilha de edição onde as vivências e documentos do tempo são estruturados em narrativas ou certezas que balizam o agora. Resta-nos sempre o presente, espaço de tempo que transcorremos e que nos apresenta o papel que desempenhamos no lugar que ocupamos. Somos entes ancorados no eterno presente.

O que trazemos na bagagem, aquilo que somos e construímos, bem como o que possuímos ou usufruímos, mas não produzimos, constitui um conjunto de entes que significam e ratificam a nossa própria existência – compreendida como um “ser que é”, um ente, no mundo enquanto vive a sua própria duração. O conceito entes abraça todo gênero de realidades, de modo que não é possível enquadrá-lo numa noção ainda mais universal. Seus significados são moventes, acolhem definições tais quais “aquilo que é”, “o que existe”, “o que é real”. Assim, são entes uma mulher, um pássaro, um avião, uma árvore. Acolhemos também nesse conjunto de atribuições aquilo que não é material, como as entidades, pois sabemos que estas constituem a existência de algo real, ou melhor, a materialização de suas próprias essências.

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Fechar os Corpos II

Matheus Ribs
Fechar os Corpos II, 2022
Óleo e acrílica sobre tela
144 x 197 cm

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Em função do projeto construído para a galeria no ano de 2024, discutimos nesta exposição inaugural, por meio dos entes, quatro eixos centrais: tempo, arqueologias, outras ecologias, fé e crença. Estes pilares, que agrupam sem segregar os artistas e seus interesses, afirmam discursividades sobre maneiras plurais de existir no mundo, apesar das estruturas hegemônicas que prejudicam ou inviabilizam as distintas formas de vida que defendemos aqui. Cada obra e artista apresentam seu interesse no mundo e
os aspectos que significam as diferentes formas de cultura, religião, posicionamento político e pesquisa. Os trabalhos de Antônio Oloxedê, Caio Pacela, Cibelle Arcanjo, Daniel Jablonski, Kika Levy, Laíza Ferreira, Liene Bosquê, Marga Ledora e Matheus Ribs, apresentam-se como agenciadores de discussões mais amplas e complexas do que conseguiríamos abraçar aqui. Por essa razão, cada obra e artista operam transversalmente uma reflexão, como uma porta de entrada para a pluralidade a partir de sua própria condição de existência.

Para comunicar valores garantidores das existências plurais, não traçamos uma linearidade que discuta os significados que cada trabalho abriga exclusivamente. Ao contrário, quisemos estabelecer uma conexão movente entre obras e artistas, na qual cada componente atua como um agente de discursos e lugares, lutas e posicionamentos, crenças e esperanças. Por isso, perceberemos que em alguns momentos as obras se apresentarão como proposições complementares para uma realidade em constante transformação e ruína dos valores que nos trouxeram até o presente – considerando todo paradoxo de gozo e violências nelas contidos. Como aponta o filósofo Byung-Chul Han, a vida humana não é apenas radicalmente transitória, mas o próprio mundo o é. Cientes dessa provisoriedade, queremos refletir e apresentar não somente os entes que compõem silenciosamente o mundo, mas como operam para que suas próprias vidas, culturas, lutas e esperanças sejam perenes e, sobretudo, livres das ameaças de aniquilação.

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Achamento

Caio Pacela
Achamento, 2023
Óleo sobre madeira
42 x 29 cm

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Princípio e fim

Caio Pacela
Princípio e fim, 2023
Óleo sobre madeira
40 x 29.40 cm

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Encontro

Caio Pacela
Encontro, 2023
Óleo sobre madeira
40 x 29.50 cm

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A fim de conectar as poéticas artísticas apresentadas por meio dos quatro eixos anteriormente citados – tempo, arqueologias, outras ecologias, fé e crença –, decidimos aproximar os trabalhos por suas afinidades formais e de pesquisa. Contudo, essas aproximações não são determinantes para conferir sentidos aos trabalhos, servem apenas para tecer um discurso curatorial que abrigue e propague as narrativas individuais de cada um dos entes.

O primeiro núcleo discute e crença, através das experiências de religiosidade dos artistas. Antônio Oloxedê apresenta suas esculturas encantadas, que carregam consigo os saberes e práticas dos rituais e definem a ancestralidade como uma força motriz do tempo e da vida. Cibelle Arcanjo estabelece em sua pintura uma relação fluida entre as entidades espirituais, a natureza e as nossas próprias vidas. Caio Pacela aborda, em outra perspectiva religiosa, vinculada às práticas neopentecostais, a contemplação e a transcendência provenientes dos estados meditativos do rito.

Tempo e arqueologias reúnem quatro artistas que discutem a sobrevivência das culturas, dos saberes e dos lugares. Laíza Ferreira, com sua colagem, investiga o passado e estabelece um lugar de alteridade em relação às culturas e povos tradicionais, deslocando o outro do lugar imposto pelo pensamento colonial. Liene Bosquê apresenta sinais da relação de seu corpo com o mundo. Impregnadas de memórias de lugares e de pessoas, suas obras conectam temporalidades e apontam as descontinuidades sobre as quais atuam como agente de perenização. Marga Ledora, com seus desenhos-pinturas, oferece uma noção singular da experiência do tempo e do lugar. Suas obras, que flertam duplamente com a abstração e figuração, promovem uma pausa em nossa percepção como se proporcionassem a descoberta de um abrigo cromático repleto de memórias e sensações. Matheus Ribs elabora uma investigação social sobre o tempo presente. Distintas formas de vida, ameaçadas em suas existências, denunciam conflitos de terra e violações de direitos humanos, em perspectiva decolonial, defendendo territórios e comunidades
tradicionais.

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New York I

Liene Bosquê
New York I, 2017/24
Tingimento natural com solução ácida, ferrugem sobre linho, algodão e seda
160 x 270 cm

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Daniel Jablonski e Kika Levy apresentam outras ecologias. Ambos partem de um trabalho de investigação das relações entre as plantas e a sociedade ao longo do tempo. Daniel recupera imagens do século XIX e coloca em questão não somente a domesticação de espécies vegetais como a compreensão do valor da vida desses entes naturais. Kika Levy nos apresenta em suas monotipias as relvas, crescidas inadvertidamente nas ruas, e fissuras nos espaçamentos urbanos, cujas sobrevivências dependem única e exclusivamente do desejo humano de deixar que permaneçam onde brotaram.

Todos os entes que fazem essa exposição real narram suas próprias visões e experiências no mundo. Discutimos a vida em constante movimento, suas dores e belezas. Tudo aqui é real, ainda que a artificialidade das imagens diga o contrário, pois onde há fluxo de vida não subsiste o que não é de verdade. Essa exposição se define, por fim, como um libelo contra as formas de dominação, contras as violências materiais e simbólicas, e a favor da perenização das diversas formas de vida – incluindo as que não puderam participar desse projeto. Cada obra é um convite, um abraço que agrega e acolhe as nossas próprias diferenças e nos faz caminhar adiante na eterna construção de uma possibilidade de futuro.

Shannon Botelho é crítico de arte e curador.

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