Ensaio sobre Apologia de Sócrates, de Heleno Bernardi, publicado no livro Apology of Socrates – Doors Galerie – 2006.
Por Roberto Corrêa dos Santos
Não se trata da beleza – trata-se do pensamento. Não que se despreze a beleza, pois bem importa; surge aqui a beleza, de início, pelo laborioso expressar de seu avesso. Um avesso que parece não mais ser, ou jamais ter sido, da tranqüila ordem do liso. Texturas ásperas e porosas compõem, cerca-se a imagem de voltas, curvas rudes, um certo desalinho, como se bem ali ocorressem miúdos distúrbios do adorno. Aquilo que contorna contraria o valor do acabado, rediscute os ideais de perfeição. O rosto de Sócrates o desdiz e ao mesmo tempo o reafirma. Nele, a longa história de suas perguntas, os vastos caminhos do mapa de suas preocupações, espalhados por toda parte e finalmente confluídos para aquele lugar do corpo. Lugar que o Ocidente convencionou como o mais próprio para focalizar o mito eternizado da beleza. E será bem aí, no rosto de Sócrates, que se reunirão, antes de qualquer outro ato adiante, multidões de traços miúdos por toda a superfície, a indicarem seu gradativo ruir, logo seu transformar-se, seu provável – embora impossível se vislumbrar quando – desaparecimento. Assim, expondo a primeira e provisória face de Sócrates, ainda não afagada, porém já sob a mira de uma inteligência irônica e rara, Heleno Bernardi dá-nos sua Apologia de.
Sócrates era feio, deixaram ver os discípulos próximos – Platão e Xenofonte – em suas diferidas Apologias. Sócrates era feio, gritara, alto, insistente e bem perto, Nietzsche. Talvez todas as buscas relativas ao fazer do pensamento e da arte tenham-se dedicado ao exame dessa guerra ativa ou, quem sabe, do acordo repleto de labor, entre beleza e pensamento. Para além de desmontar esse problema, Heleno irá agir, ultrapassando o sítio do rosto. Reconstruirá de Sócrates a cabeça. Trazida à cena, afugenta-se o rosto ou este se contrai.
A cabeça já não indica, em nossos sistemas imaginários, a seta do belo. E sim a do pensar com seus múltiplos correlatos verbais: meditar, refletir, guardar, esquecer. A massa de fluxos diversos e quase impalpáveis acaba de ser pelas mãos de Heleno tocada. Convocam-se memória e história, filosofia e arte, redes neuronais ativas, idéias públicas e íntimas. Demonstra-se nossa sábia capacidade de reter e de expelir. O que era em aparência duro, vai-se revelando habilmente plástico.
(Veja exposição de Heleno Bernardi na Janaina Torres Galeria, aqui)
Como, em obra, expor, pondo bem à vista e com firme claridade, o plasmar do pensamento, inclusos os tantos processos a ele vinculados? – alguém indagaria. Heleno terá por resposta bolhas e bolhas de perguntas. Espumas, uma das grandes figuras da ironia. Heleno responde com as mãos, deverá estar sorrindo. Acaricia a cabeça de Sócrates, lavando-a. A socrática nuca desdobra-se entregue àqueles dedos, a ela unidos por emolientes. Líquidos umectantes aproximam os dois artistas-pensadores, tudo se dando fora do interesse pela limpeza, a favor da mobilidade e do expandir.
Sócrates descuidava-se quase sempre, escolhia aparecer assim, apesar de, nele, algo, provindo de algum campo imantado, manifestar-se em alvura. A Apologia, construída por Heleno, retoma tal luz necessária, para que exerça a maiêutica de seu trabalho por meio dessa escolhida e reversa atitude discursiva. Pariu-se o velho Sócrates, aquele pequeno e radiante fragmento que restara como suficiente para designar haver, queiramos ou não, um grande corpo, o corpo de Sócrates, a caminhar sobre nós com pés descalços. Sócrates a assombrar, a cortar o espaço, a vagar pelo tempo. O corpo ausente de Sócrates e sua poderosa sobra inauguram e sustentam isso a que ainda cabe chamar de ocidentalidade. Discursos vários fenderam-no para que, no múltiplo, perdurasse.
Bem compreendeu Heleno que teria bastado agir sobre o território específico – sobre aquela seção corporal – para rir-se de toda nossa banhável metafísica. Concentra-se, distende-se, trabalha. Opera, despreocupado com o fato do que acontecerá à obra. Acata o durante, o existir ou o desexistir vão sendo feitos: eis o modelo alegre, portanto trágico, de lidar com a fractada seqüência de um conhecido imprevisível que, é quase certo, assim tem de ser, regressará. Tem-se a tarefa, esse é o dado acionante, e do término jamais se sabe. A operação sobre o material com que esculpe – a esponja, a espuma, o petróleo, o procedimento químico – conecta-o àquela altiva natureza grega de investir no retorno. Agir, agir para que se aproxime o retorno alterado e elástico.
Na escolha da figura e da matéria, desenha Heleno a frase sobre se teria sido um dos propósitos do homem-de-arte pelas eras tornar-se o senhor do retorno. Nos retângulos, distribuídos pelas páginas, focaliza-se, com vigor tão intenso, o amoroso (des)fazer-se, de modo a que se acompanhem a virtude das formas, o desmonte das linhas, a construção do rosto-vazo, da cabeça-vaso. Do mármore, já distante, corroído e abandonado, à passagem, por meio do ir e ir tocando, massageando, fazendo arrefecer, até, até o ponto, apenas momentâneo, do surgimento de um inimaginável, sereno, espesso e estonteante cristal, por força própria esculpido; o regresso impensado da beleza ressurgindo na forma do informe.//
Frente às cenas desse processo, vê-se lá, antes de submerso e por isso – e por mais – demasiado altivo, Sócrates, o pensante que já não consegue guardar o que pensa, pois o que pensa assoma à testa em luminosa bolha-conceito. Retraíra-se a cabeça e, de suas intermitentes pulsações, brota a idéia que se desprenderá a fim de que a assegurem por instantes e a passem para outro e outro e outro, membros de uma dinastia de criadores-enxadristas a moverem com delicadeza e argúcia as peças que compõem os grandes e multifacetados conflitos dos entendimentos.
Eis a bolha, leve, pousada ainda naquela área, curvilínea, quase um indiscernível risco de compasso, um volume etéreo bem sobre a aspereza dérmica. Sócrates riria, como Heleno ri: está sendo Sócrates banhado – é preciso dar paz aos pensamentos, silenciar, ultrapassar a polaridade dos diálogos.
A dissolver-se encontra-se na arte de Heleno o mito gestante de uma Cultura; o grande parteiro reaparece, faz como sempre fez, sair para bem pouco longe e volver. E volver sempre maior, pois alimentado dos nutrientes da ausência imperativa, fortalecido desse potente alimento dos espectros – a absência aguda, persecutória, incontornável e imbatível, ainda.
Com as estratégias justas e à altura do Sócrates guerreiro, Heleno afunda o dedo no ponto indicial de uma sabedoria que silenciosa resiste e continua a atar. Serve-se dela, não recusando o inexorável e paradoxal fato de que, por meio daquela ciência, a um só tempo respiramos e somos afogados. Saberemos, com os retângulos, as leis do embate para – com a galharda força adquirida do exercer com rigor máximo todas as etapas e operações do ofício que for – criar e permitir que nas enérgicas dobras de imagens calmas e brancas, a nossos olhos mais e mais a crescerem, pulsem o que nelas há: sangue e carne. Sangue e carne que bem conhece Heleno – os tons de vermelho abertos em suas obras outras, aquelas em que a goma dos sonhos fora efetuada com a boca, com mandíbulas e dentes; em todas, com ações ritmadas, quase mecânicas, move-se o corpo operante.
Decidido, continua Heleno a manusear, a redispor, a atingir. A imagem não grita em qualquer de seus flagrantes. A imagem, haja o que houver, afirma seu desígnio. Sócrates não temia o acaso, reconhecia os valores. Sócrates dá rumo, não recua – sabe o sentido sagrado desse ato, recuar, e, portanto, quando se o merece –, segue, avança. Reduz e alarga.
Sensualizante, esteve Sócrates prestes a soltar seu leitoso caldo, frente a algum amável Cármido, a quem também desejou dedilhar a claríssima corporeidade. Reconhecendo os movimentos do desejo, quis a generosidade artística de Heleno que isso assim – como põe-se a ver –, sob o atual aspecto, se desse, fazendo-o espumar em renovados gozos. Por todos estes séculos, esteve Sócrates a caminhar por regiões da volúpia e da razão. Alguma hora será própria para recomeçar a guerra – entre os corpos, entre os pensares, entre os labores –, para empenhar-se nas conquistas. Que se mire a obra: há luta e amor. E gentis convulsões de Eros.
Diante de tão refinados conceitos, segundo os quais reescrituras da história e dos saberes se apresentam, retomam-se propostas relativas ao cérebro, entendido, conforme anunciara Freud, esse fabuloso helenista, como uma espécie de esponja e, por isso, capaz de fixar, guardar, expelir. Os elementos mnemônicos não estouram o cérebro, pois não acumulam indefinidamente; ao contrário, pelo cérebro, codificam-se os conteúdos, repostos na economia de traços, códigos, pontos. Recursos de sua plasticidade que poderão ser, a qualquer momento, recombinados para criarem os mais distintos artefatos (verbais, afetivos, estéticos). As tecnociências do cérebro, salvo em casos particulares de brutezas traumáticas, não se rompem: expiram, inspiram. Tal se dá nesses admiráveis e magníficos constructos de Heleno: vale-se o cérebro – visivelmente demonstra-se – das glórias do esquecimento, uma das condições de vida saudável do lembrar, em seus vínculos com a memória-esponja, com a memória-espuma. Mutações orgânicas, na alegria obrada, expõem-se.
A cabeça de Sócrates vai perdendo a razão na arte de Heleno; o senso que a norteia começa a dar indícios de pôr-se a escapar. Há, nos retângulos, a longa narrativa de um desmonte, qual se descrevesse um surto periódico e sutil, o surto do Ocidente a processar-se. Porém, a cabeça, aquela totêmica cabeça-tabu, não cai, nem desaparece. Surta vagarosamente. Ou: absorve e expressa novas máscaras, que já não representam as antigas afecções do espírito, como a dos atores antigos que, por elas, ficavam liberados das estruturas moles do dentro. O exterior por que clamavam os grandes trágicos gregos, contudo, mantém-se. Mantém-se, sem a necessidade de designar o que quer que seja da ordem dos vocábulos humanos: tristeza, dor, felicidade etc. Aquilo que se sente e se expressa é da natureza da contorção. Os afetos não são representáveis. São massas, ângulos, obtusidades, pulsares ativos.
O exterior, na arte de Heleno, consiste em curvaturas do próprio exterior. Refere-se a uma saúde nobre e rara – a de ser muitos e poder ser mais, que provém da sapiência de ir além dos segredos dos conteúdos, de maneira a poder modelar sobre as largas possibilidades dos continentes, e assim torná-los tantos e, se necessário, refazer o já tornado, abrir novos começos, escolher entradas desconhecidas, acentuar o vigor do modificável, os rumos e as relações da vontade experimentante.
O quase explodir da imagem, por Heleno, é tranqüilo, sem pressa. Sem gritos; habilíssimo ao interromper o afogamento da suposta cena última. Em todo o conjunto, respirações. Não mais com os primários órgãos faciais apenas. Respira-se por ali estar bem livre o mundo dos poros. De Poros., com sua riqueza de recursos. Dele, o viver flui, levita. O vento corporal escapa, ganha a radiosa forma da espuma; suave gesta certa emulsão de um si imaterial, um si a espumante cintilar. Em tudo, irrompe aquele termo: deslumbramento.
Paz, voluptuosidade, potência. Dispositivos acima dos gestos habituais de desfazimento do socratismo: não quedará este ídolo, esta idealidade, ainda. Cabe, pois, apresentá-lo em teste. Escolhe-se dele o parcial, o detalhe, essa metonímia própria dos fetiches; leva-o Heleno para fora dos lugares de visitação pública, ou seja, para os locais mais domésticos – a cozinha, o banheiro, as áreas de serviço. Locais onde se utilizem as esponjas, onde poderia permanecer a cabeça-esponja-Sócrates. Antes de ser espremida, quem sabe, umedecê-la, com o fim de esfriar a luz quente de seu – de nosso – racionalismo. Produzir borbulhas nos argumentos baseados em seus – nossos – sonhos de verdade, em luta com os sonhos repletos de inquietudes e ficções. Sócrates poderá vir a ser útil – continua a rir Heleno – ao brilho das panelas, dos pratos, dos talheres. E a outras espécies de brilhos nossos. E para banhar o Ocidente com o Ocidente. Assim, segurá-lo, contê-lo, dar-lhe um susto, uma sensação de morte oceânica. Com a Cabeça-Ocidente-Sócrates, lavar-nos das sombras que, dela, sobre nós se projetam desde há muito, desde aquando.
Por enquanto, prepara Heleno a Cabeça, para que Sócrates entre em cena não maltrapilho; ei-lo, charmosamente decomposto. Limpar da Pólis – quis Sócrates – o poder do falso. Isso, em nome da fantasia do exato. Bem umectar Sócrates, declaram as obras, afirmativas. Ao ponto certo, para simplesmente ir-se abrandando seu estado sólido.
Sócrates já não caminha sobre a terra, será levado de um lugar a outro, ou ficará em alterações no mesmo espaço, orientalizando-se. Sua força está em foco – e continua imensa: vapores espalham-se. A qualquer segundo, uma bolha e depois outra e mais outra desprender-se-ão. Vale fingir ignorar para onde se dirigem (pois a caminho), quando começarem a explodir e a de todo controle escapar. Misturam-se as bolhas socráticas à umidade ampla dos ares. Impregnam o corpo – o corpo nosso – dia a dia, ainda. Deixam seus líquidos a bolha-espuma-Sócrates, a bolha-espuma-Ocidente, ainda. Criam uma natureza outra, ainda. Não à toa, o corpo – o corpo nosso – reage, faz-nos ver Heleno.
Em uma das figuras, a boca não desaparece: Sócrates fala, ocultando a escrita. As mãos de Heleno detalham, montam, grafam. Resta de Sócrates, naquela outra, um olho. Este não é suficiente para conter o desmanche da identidade – e assim acontece e nela já não se deveria crer. Ergue-se o grande volume, o signo amplo da cabeça. Não há busto nessa lógica estatuária, seria humilhante. Sócrates não se deixa reter nos corredores de figuras históricas ou humanas demais. A cabeça ampara-se por si, correndo riscos é certo, exercendo a sagacidade grega do equilíbrio: sem a base de ombros, omoplatas, tóraces, peitos sem costas, pedestais, faz-se o recorte do corpo. Heleno avoca-nos a examinarmos essa extremidade corporal sem deixar de insinuar a outra: os pés, aqui em suposto. O Ocidente relaciona-se a essas entidades físicas atingidas: o pé (o pé inchado de Édipo) e a cabeça (a cabeça inchada de Sócrates). Reflexões diversas e cruzadas abrem cavidades no pensamento. Da ordem do sangüíneo e do pulmonar, o pensamento circula, excede, retoma resíduos, seleciona, combina, constrói, cansa-se, quase pára, segue, dispersa-se. Sopros, espumas. Mesmo. (Des)organiza-se. Heleno o conduz para alhures, excedendo noções – memória, imagem, conhecimento, escultura, fotografia, vídeo e. Dá-nos, como presentes, conceitos pulsantes da vida em arte.
O apologista Heleno acompanhando e lendo a conduta de um Platão historiador, enuncia e elabora muitas das tantas e diferenciadas faces de um Sócrates a transmutar-se. Nenhum de seus díscipulos terá sido capaz de fixá-lo. Heleno faz a genealogia desse percurso das mutações e das tentativas de um querer-congelar. Qual das cabeças, em suas frontalidades, mais bem expressaria aquela que no Fedro fala, aquele outro-mesmo-diverso, em Mênon, em Górgias, em Protágoras, em Fédon, em Críton. Ou aquela das Nuvens, na crítica de Aristófanes. Nuvens como espumas voltam.
Para certas imagens, coladas aos corpos dos nomes próprios, bem pouco poder têm os séculos: o corpo, o nome Sócrates, segue a longuíssima duração. Onde deixara Sócrates seu cajado que fincaria em nós? Bem perto esteja talvez. Heleno e Sócrates provavelmente saibam. A ironia de Sócrates e a ironia de Heleno encontram-se. Compartilhamentos. Os dois devem ter estado a gargalhar, antes das filmagens e das fotos, naquele encontro insólito do banho, da pia, das relações afetuosas entre eles, entre nós e eles, entre todos e os utensílios.
Celebra Heleno Bernardi não a eternidade, mas a finitude: o comovente evaporar, o breve tempo do fabrico, o registro do agora. Não mais o tenebroso infindável de Chronos, e sim os tempos partidos, soprados, aerados – o vasto ensinamento de suas espumas formando-se, sumindo. O não haver de recordarmos de como eram, nem sequer de terem elas surgido. Um tempo de epifania fina, instantânea, o sentido do relance.