O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma esquina, você é invadida por uma sensação de êxtase — absoluto êxtase! — como se você tivesse de repente engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito, irradiando centelhas para cada partícula, para cada extremidade do seu corpo?
Katherine Mansfield
No diálogo vivo e pulsante que surge dos trabalhos de três artistas – Giulia Bianchi, Paula Scavazzini e Mirela Cabral – esbarramos no conto “Bliss” de Katherine Mansfield, escrito em 1918, cuja tradução no Brasil recebeu o nome de “Êxtase”. O conto dá a ver o estado de enigma e perplexidade que atravessa a personagem Bertha Young, e traz a dimensão do próprio ato de criação como uma maneira de fazer algo com o excesso que a atravessa. Bertha experimenta o êxtase que altera sua percepção e a faz sentir, no próprio corpo, a natureza vibrátil de tudo. Sua experiência de mundo se intensifica e amplia, ganha nova e enigmática profundidade, os sentidos copulam e abrem improváveis frestas na imagem.
Esse olhar abissal e feminino para o afeto vertiginoso é o fio condutor desta exposição que agora se apresenta. No encontro de artistas abertas ao imprevisto, a visceralidade e o transbordamento revelam, no abismo do gesto, um caminho para a invenção. Diante do inefável e indizível, a pintura se torna, de maneiras distintas e singulares, o lugar em que o espanto se transfigura em alumbramento.
Giulia Bianchi abriga essa dimensão insondável da existência e o convite à deriva, através de uma intuição sensível que atravessa a imanência das coisas e presenças. O desenho está presente na sua vida desde a infância e, ainda hoje, é um eixo de onde deriva sua maneira de pensar, uma fonte de possibilidades, um lugar de descobertas que a conduz para o campo da pintura. A pintura se forja, então, como um território do consentimento com o delírio, invenção de outros mundos e cartografias. Nos seus gestos, um aspecto mágico e alucinatório impregna a tela como uma intensificação do real, uma topada na estranheza das coisas que envolve sensualmente o olhar. O campo de visão torna-se também sensível, tátil, em pura presença de uma atmosfera sensual com derivas e sinuosidades diversas. Daí também se origina sua pesquisa sobre alimentos. Essa intensidade é revelada em suas próprias palavras: “Quando comecei a pintar, minha inspiração estava no cotidiano, incluindo objetos e elementos inanimados. No entanto, foi nos alimentos que encontrei mais sabor, uma riqueza de sentidos a serem explorados, uma expressão pictórica mais intensa, amplificada pelas cores vibrantes. É curioso, pois quando olho para uma alcachofra, por exemplo, logo penso em uma pintura. No entanto, durante o processo de criação pictórica, me concentro em trazer a alcachofra de volta: sabor, textura, aroma”.
Para além de simplesmente mimetizar a aparência das coisas, Giulia busca acessar o invisível abrigado na sensação e na espessura, como na pintura em que a textura macia da manteiga cria dobras que vão além da mera representação pictórica, propondo uma transfiguração que subverte os sentidos em um “exercício de presença” que é sua marca fundamental. Nesse movimento de acessar algo de ordem do invisível, a artista mergulha na espessura do mundo e das presenças: peixes, abóboras, alcachofras ou qualquer outra presença são vivificadas pelo gesto decidido de transfiguração do visível.
O embate vigoroso – e ao mesmo tempo sutil – de materialidades e formas acontece também no encontro do óleo sobre a tela, em contraponto ao uso de giz pastel. Na alternância entre figuração e abstração, em cada escolha cromática cria-se a oportunidade de uma nova linguagem. O resultado é um diálogo visual complexo em que nuances e texturas de cores vão se revelando, em uma espécie de transe em que cada camada de cor se intensifica e se abre ao acaso, interagindo em movimentos infinitos entre rigor e emoção. As paletas de cores surgidas nessa explosão não guardam relação direta e imediata com a realidade, mas transmitem uma -interpretação subjetiva e erótica de um mundo em que os contornos são fluidos e há uma espécie de borramento de fronteiras.
Paula Scavazzini também tem ligações com o desenho e a pintura desde muito nova e, no campo conceitual, sua prática foi sendo elaborada ao longo dos anos. Podemos localizar aspectos processuais que se revelam a partir de imagens pré-concebidas de algum recorte – da história da arte, da arquitetura, da decoração, filmes e fotografias utilizadas como referência – ou, de forma curiosamente oposta, com a construção da pintura a partir de imagens internas que surgem de maneira mais intuitiva. Pinturas florais surgem de uma relação com a paisagem e a abstração, e colocam em cena o tremor do corpo e a dimensão pulsional através da pincelada, no gesto que escorrega e deixa rastros como uma dança no infinito, forjada na atração por contrastes e forças visuais diversas. A artista revela parte de seu processo: “O vermelho escarlate, o azul cobalto, o verde esmeralda, em contraste com a infinidade dos brancos, rosas e amarelos, criam dissonâncias cromáticas que me interessam. Parte de minha pesquisa tem como referência certas pinturas renascentistas italianas que, além de fazerem parte de um repertório artístico ocidental geral, me atraem, justamente, pela paleta e altos contrastes cromáticos. No entanto, suas figurações costumam seguir padrões visuais mais rígidos e retilíneos, opostos à minha forma sinuosa e orgânica de pintar, desenvolvida e praticada através de uma série de pinturas florais. Meu interesse não está na figuração, mas na potência dos gestos pictóricos que as anatomias e arquiteturas de uma flor podem dar à pintura, para além da quase infinita paleta de cores”.
Esse fascínio é o ponto de partida para a artista explorar mais profundamente diversas questões, como proporções e aspectos cromáticos diversos. Ela se interessa por retratos, objetos decorativos, flores e paisagens múltiplas que, em seu trabalho, tocam uma dimensão onírica e o “avesso da representação”, como uma percepção singular da coisa em presença indomável. A dimensão do detalhe se presentifica através de pinceladas expressivas, mas há, antes de mais nada, um corpo pictórico que pende entre o etéreo e o palpável, o volátil e o imperativo. No percurso de seus gestos, cores e texturas, ela não pinta restos dos mundos mas, sobretudo, o que reviu e o que transviu: aquilo que é capaz de rememorar, imaginar e fabular no espaço entre a mão e o olho.
Na obra de Mirela Cabral, a pintura surge como ofício estruturante na sua relação com o mundo. Sua descrição preciosa revela muito de seu fazer: “É como se eu fosse achando a coisa. Entro em um estado meditativo que me orienta no que devo ou não fazer. Claro que há pontos de partida como lugares em que estive, desenhos de observação que faço e fotografias. Porém, preciso abrir mão do que sei previamente para alcançar um lugar outro que me fornece lampejos imagéticos necessários para o trabalho. O que se apresenta é então o êxtase como alguma sensação inominável na qual me sinto completamente abalada, sem conseguir descrever o que senti: algo misterioso, sem nome, mas que pode ser revelado em imagem de forma inesperada durante o processo da pintura”.
Assim, Mirela acaba por anunciar os índices de uma relação em que algo transborda e, ao mesmo tempo, é sustentado por formas como corrimãos e canteiros. Em seu trabalho há uma conjugação do rigor com a leveza, da densidade com a volatilidade. Seu trabalho está mais próximo de um campo sensível do que da pura representação narrativa. A própria experiência da pintura é a fonte de um sentido que, intempestiva, desordena concordâncias e coincidências. Seu fazer traz densidade ao acontecimento pictórico que revela uma lógica própria de constituição e fatura.
Uma força se propaga e potencializa a força visual na articulação da superfície. Seu gesto de artista não hierarquiza cores e presenças, mas convoca um lugar poético com tamanha densidade e nos conduz através de um mundo particular de referências e repertório visual. As presenças em suas pinturas podem evocar sensações múltiplas como o ruído das cores no ar, o silêncio, uma sombra ou qualquer coisa que nos faça acordar de um estado de dormência e nos devolva a vertigem clarividente e sensível, o magnífico de se estar vivo.
Do diálogo agudo que surge do encontro dessas jovens e promissoras artistas e suas obras, somos convocados ao burburinho e ao rumor do êxtase: essência e forma, cor e conteúdo, sensação e olhar, uma profusão sensual – tão delicada quanto feroz – de relações que erigem da exuberância plástica de cada uma. Na misteriosa rede de coisas e acasos, a arte se insurge como um meio singular de lidar com aquilo que sempre escapa, uma forma de transmutar e incluir o que agita e perturba, o volátil, o dramático, a transbordante experiência que nomeamos êxtase e que reverbera.
A fineza desse encontro e o esplendor da presença das coisas foi descrita na intensidade atenta e acesa da poeta Sophia de Mello Breyner, que assim nos ilumina: “A coisa mais antiga de que me lembro é de um quarto de frente para o mar dentro do qual estava pousada em cima de uma mesa uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário, era a própria presença do real que eu descobria”.