Organismo: Ricardo Siri, transcendental - Janaína Torres

São Paulo Brasil

Organismo: Siri, transcendental

11 de junho de 2020 | 11:19
Ubiratan Muarrek
Ricardo Siri, Pindorama 02 (2020), colmeia e cera de abelhas, 17 x 46 x 2,5 cm

Emergiu do movimento neoconcreto a ideia da obra de arte como “quase corpus” e “organismo vivo” e a retomada das qualidades afetivas, da sensibilidade e da significação existencial e emotiva da arte. Um projeto ambicioso, tendo em vista o domínio de um certo racionalismo no período imediatamente anterior, que “rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções de objetividade científica” (Manifesto Neoconcreto).

Para os neoconcretistas, como Hélio Oiticica e Lygia Clark, tratava-se de dinamitar as noções de tempo-espaço e criar a experiência da arte: a comunhão de matéria, forma, significado, relação e afeto, dando à experiência estética um caráter quase epifânico, a partir do contato entre artista-objeto-espaço-público. A totalidade da experiência de arte proposta pelo movimento não poderia ter outro destino que não fosse a expansão; daí sua forte influência em outras esferas culturais e comportamentais, das quais a música, com o movimento tropicalista, tenha sido, talvez, a mais exemplar.

É a partir dessa trilha que podemos situar uma obra como a do carioca Ricardo Siri que, a partir de uma carreira estabelecida no universo musical, expandiu seu repertório para as artes visuais, na qual incorpora elementos sonoros, performances e imersões. Siri atualiza certos pressupostos neoconcretos de um todo orgânico para a experiência da arte, em uma abordagem espacial e temporal que une artista-obra-espaço-ambiente-espectador.

Mas, se o projeto neoconcreto partia da referência da obra de arte para chegar ao espaço, ao gesto e à música – como os parangolés e Tropicália –, Siri faz o contrário: parte da música e da sonoridade para ir de encontro à obra, propondo dinâmicas híbridas para a experiência da arte e reafirmando o seu caráter permanente de enigma. Não estamos mais nos anos 60, afinal. A promessa de libertação através do suporte/corpo, como elemento estético e, portanto, político, encontrou uma forte reação. Manifestos se esvaziaram de sentido; são um recurso hoje de uma política estilizada e de estratégias de marketing de agências de PR.

Ricardo Siri, Aglomerados / Esporte (2020), Caixa de madeira, olho mágico e fotografia 35 x 26 x 30 cm

Concretude orgânica

Se tudo o que cabe à arte diante da distopia que dá contornos à experiência do agora é discurso, ou “tramas de relatos subjetivos”, como propõe parte significativa da produção atual, é sinal que algo da herança neoconcreta – a força, provavelmente – se dissipou. A uma era de cacofonia e ruído, cujo resultado paradoxal é a imobilidade e o silêncio, em que a experiência cultural e social se dá na precariedade e instabilidade do éter digital, instaurando um corpus formado por uma rede de partículas atomizadas, Siri propõe uma certa concretude orgânica para a arte, instaurada em um espaço de percepção ampliada e de uma chamada à vivência coletiva, em uma época exausta de subjetividade. Concebe então um locus – como os Ninhos – de relações íntimas entre artista-obra-público, mas de caráter intensamente político: recolher gravetos para produzir abrigos, nesse mundo louco do novo fascismo, é algo potencialmente subversivo.

Siri parece estar atento a isso. No entanto, ao invés de produzir arte-panfleto, utiliza-se da matéria mesma da obra como início e fim de uma experiência estético-sensorial. Não há retorno, nos termos da arte. Somos todos neoconcretos agora, seria o caso de se afirmar; mas, em um mundo que deu origem a um Covid-19, como podemos interagir sem nos tocar?

O trabalho de Siri surge da percepção de uma impossibilidade e é emblemático que em Organismo, sua individual mais recente, o universo das abelhas seja o elemento que dê unidade ao conjunto de obras expostas. A pertinência desse tema ao momento presente é tamanha que torna desnecessária qualquer elaboração adicional – da metáfora de organização coletiva aos pesticidas e aniquilação de ecossistemas pelo modelo de desenvolvimento insustentável atual; são elementos, evidentemente, presentes no trabalho de um artista imediatista como Siri. Mas discursos em cera, em si, adicionariam pouco, além de tudo o que já é suficientemente dito – e, consequentemente, pouco ouvido -, à percepção do espectador, se o tema e seu léxico não estivessem impregnados de tal forma na matéria e no próprio fazer artístico a ponto de exauri-los como referencial.

Ricardo Siri, War 01 (2020), colmeia e cera de abelhas, 17 x 46 x 2,5 cm

“Telas” compostas de cera

Obras como War e Pindorama, “telas” compostas de cera de abelha moldadas com solda, formando mapas-múndi e mapa do Brasil, tornam explícito esse, digamos, próprio embate: arte e cultura se enfrentando no campo, eventualmente minado, composto de matéria, forma, linguagem, significado e história. À fragilidade do suporte – colmeias de cera –, amparada pela heresia da proposta (que começa, sem se esgotar, na escolha de um tema), corresponde uma exibição de força puramente estética, e esse é um dos muitos  paradoxos que o trabalho de Siri procura explorar. Impregnada de urgência, trata-se de uma obra que pretende, afinal, comunicar, o significado último, senão o propósito, de uma expansão. Siri incorpora o mundo – a cultura – ao espaço e à própria matéria da arte. Elege a literalidade como neoconcretude. E impregna o ambiente perceptivo de alusões, afetos, emoções e sonoridade – esta se dá, por vezes, no silêncio: há um zunir que inter-relaciona as peças e a experiência expositiva de Organismo.

Em Colmeia, Siri amplifica a percepção de espaço-tempo-som. Desconstrói trombetas, bombardinos, trombones e trompa, estabelecendo novas relações entre os instrumentos, criando associações zoomórficas e antropomórficas (instrumentos-humanos-abelhas) e compondo um novo todo: a partir de um núcleo central, as extremidades e campanas dos instrumentos “saltam” a partir da base, em direção ao espaço – ao espectador. Siri não poderia ser mais explícito. Compõe e executa uma sinfonia a partir do silêncio, em volume alto:  uma textura sonora que se torna mais potente quanto mais é imaginada. Na série Aglomerados, em que instaura um olho mágico nas caixas de abelhas encontradas nos apiários, o movimento se inverte; aqui, não é a obra que vai ao espectador, mas este que é chamado até a obra: para descobrir-se refletido nas fotos de multidão no interior das mesmas, deparando-se com um estado de coletividade, como componente de um todo orgânico unido pela vida e pela linguagem, mas cujo sentido só pode ser estabelecido, em sua totalidade – ou seja, na abrangência possível de significados –, por meio de um olho mágico, ou seja, da arte.

Ricardo Siri, Colmeia (2020), trompetes, bombardinos, trombones e flugel horn, 76 x 105 x 50 cm

Entre cera, penas, barro, gravetos, batuques e associações ancestrais, Siri não parece sugerir o retorno a um estado de natureza; eventualmente, ironiza o conceito de uma pureza que jamais existiu. Até o momento, e esse é um trunfo, Siri contém o zunido das obras no território da arte, ainda que em perspectiva ampliada: arte-vida. Isso pode soar menor do que a ambição neoconcreta; Hélio Oiticica almejava uma expansão cósmica a partir da matéria, obtida por meio de uma expressividade radical; Lygia Clark propôs a arte-terapia, a partir de interfaces sensoriais. Em sentido inverso, Siri exaure, em Organismo, a expressividade da própria matéria. Esse é seu limite – e a possibilidade de atingir o transcendental.

Ricardo Siri, Ninho #7 (2020), galhos, folhagens e barro

Assista a performances de Ricardo Siri no You Tube

Ubiratan Muarrek é escritor e jornalista

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